Vi uma coruja dias atrás. Eu caminhava para casa com a noite já bem adiantada, a rua iluminada apenas de quando em quando conforme a coreografia dos faróis dos carros passando, e de repente, num dançar de luzes, lá estava ela me encarando do galho de uma pequena árvore.
O animal não usava óculos como nos desenhos animados e não havia nenhum livro sob suas patas, o que me fez questionar se aquela era uma coruja de verdade.
Ela não me pareceu muito preocupada por ter sido descoberta, decerto que não estava a cometer delitos noturnos. Parei para olhá-la – aqueles olhos cheios de silêncio -, mas o trânsito barulhento não parou e entre uma escuridão e outra, o galho vazio.
Causou-me certo estranhamento aquele encontro (Bandeira diria que foi um “alumbramento”). É claro que já vi corujas antes, mas foi menos num zoológico ou na natureza do que na tela do computador ou da TV.
Causou-me certo estranhamento aquele encontro. É claro que já vi corujas antes, mas foi menos num zoológico ou na natureza do que na tela do computador ou da TV.
Lembro-me também que uma vez fui à casa de uma amiga cujos pais eram professores e, na sala de estudos, havia, entre apostilas e livros sem pó, uma centena de corujas de madeira, argila, plástico, vidro, porcelana, etc. Era para representar a inteligência, mas o negócio era meio bizarro, com jeitão de seita satânica docente. Na época achei legal.
Voltemos à minha coruja no galho. Como disse, eu caminhava para casa quando fui surpreendido pela visão daquele animal. Digo surpreendido, pois neste ir e vir cotidiano, pouco me dou conta da paisagem, uma vez que a repetição tende a ir borrando os contornos da visão. Parece necessário que algo atípico cruze nosso caminho para enfim diminuirmos o passo: é como andar apressado pela cidade, todos sempre atrasados, e do nada cruzar o olhar com alguém no meio da multidão: basta-nos um belo sorriso e o atropelo do tempo nos dá uma folga, há silêncio, conjecturas de um futuro sem solidão…
Se isso for verdade, as coisas e as pessoas só passariam realmente a existir para nós depois que parássemos para olhá-las com mais atenção, caso contrário seriam apenas um borrão, uma sombra. Perceber o outro num mundo que olha apenas para si mesmo nesse universo todo feito de espelhos e celulares, deveria ser um tipo de vanguarda ou pelo menos alguma forma de poesia de resistência.
Eu vi a coruja, não foi apenas um vulto. E quando essa possibilidade surge – parar e observar o mundo acontecendo – é como se nos reconciliássemos com a vida, pois sei que a coruja também me viu e, neste breve segundo, por meio dos seus olhos, de certa forma eu também passei a existir.