Uma expressão que ouço desde a infância me intriga um bocado. Para dizer que alguém faz e acontece, “é da pá virada”, a sabedoria popular costuma dizer, há gerações, que a pessoa “pinta e borda”, como se as duas atividades, ligadas ao universo da criação e das artes, fossem equivalentes a atear fogo a Roma. Ou, talvez, a ofender a ordem vigente, chutando para cima a moral e os bons costumes. Seriam, portanto, atos subversivos.
Sempre gostei de quem pinta e borda, embora nunca tenha me encaixado, pelo menos não publicamente, na categoria de quem estampa o “7” (esse número encharcado de significados) nas paredes, físicas e simbólicas, da realidade. Prefiro as revoluções mais recatadas do cotidiano, aparentemente invisíveis, porém não menos transformadoras.
O mundo precisa de quem pinta, colorindo e dando-lhe novos sentidos, deixando sua marca. E, confesso, sempre tive particular curiosidade e interesse por quem borda. Enxergo na minúcia desse trabalho manual, tanto concentração quanto serenidade, na mesma medida em que também cobra inventividade, na criação de novos traçados, algo de muito poético, vital e perseverante. Uma fúria introspectiva.
Penso na Penélope da Odisseia, poema épico de Homero. A personagem, para alguns a encarnação do conformismo, aguarda o retorno de seu amado Ulisses, que parte em uma longa viagem, com a missão de lutar na Guerra de Troia. Em sua espera de 20 anos, ela tece, atividade que muito tem a ver com bordar, durante os dias, para depois desmanchar, nas horas noturnas, todo o trabalho realizado. O recomeço lhe permite o renascer da esperança, a possibilidade de que o fim não exista, e no manusear dos fios, ela reinventa seu amor, rebobinando o tempo. Assim, a volta de Ulisses é sempre uma possibilidade. Tecer (ou bordar) é sua guerra, uma revolução silenciosa.
O mundo precisa de quem pinta, colorindo e dando-lhe novos sentidos, deixando sua marca. E, confesso, sempre tive particular curiosidade e interesse por quem borda.
O bordado é uma possibilidade ao alcance da mão. O fio do tempo penetra o tecido e conta histórias, fazendo da materialidade do trabalho, que aos poucos ganha contornos, relevo e, portanto, uma narrativa, uma extensão da alma que conduz os dedos, opera o olhar. Este nem sempre precisa estar grudado nessa geografia que se desenha. Em um estado de concentração que se aproxima do transe, ele fica suspenso no tempo. Como Penélope.
Talvez por isso pintar e bordar, ocupações aparentemente pacíficas, guardem em si a potência de uma lufada de vento que nos faz enxergar o que parece estático e inalterado de uma outra forma. Um mudança de dentro para fora.