Era uma vez uma mulher chamada Dora. Ex-professora, pobre, suburbana, amarga. Como meio de sobrevivência, escreve cartas para analfabetos no principal terminal ferroviário do Rio de Janeiro, a Central do Brasil (1998), que dá título ao longa-metragem de Walter Salles. Até o dia em que Josué, um garoto que perde a mãe sob as rodas de um carro, a atropela e lhe pede para ajudá-lo a encontrar o pai. Nessa procura, a ensina a se reconectar com sua humanidade.
Dora, em sua jornada rumo ao agreste em busca do pai de Josué, foi mais longe do que imaginava. Levou Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro nacional, ao Festival de Berlim, onde ela e Central do Brasil foram premiados e consagrados. E também lhe deu lugar de honra, quem diria, nas cerimônias de entrega do Globo de Ouro e do Oscar. A carioca Arlette Pinheiro (seu nome de batismo), beirando os 70 anos, tornou-se uma das poucas estrangeiras a ser indicada na categoria de melhor atriz, interpretando uma personagem em seu idioma nativo. Antes disso, já havia recebido, pelo mesmo papel, os prêmios dos críticos de Los Angeles e do National Board of Review, sediado em Nova York. Só duas outras “gringas”, a norueguesa Liv Ullmann e a italiana Anna Magnani, tinham conseguido esse feito.
Em 16 de outubro, Fernanda completa 90 anos. O irônico em tudo isso é que não era uma atriz de cinema por vocação. Teve poucos e grandes papéis, mas sua grande, ou melhor, imensa praia sempre foi o palco. O que poucos sabem é que, jovenzinha, nos anos 30 e 40, era louca por filmes. Via três, quatro por semana. Era fã de Bette Davis, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Laurence Olivier. Nos anos 50, ao lado do marido, o ator Fernando Torres, chegou a apresentar na Rádio MEC o programa Falando de Cinema, no qual o casal entrevistava personalidades da sétima arte nacional e, eventualmente, internacional, quando em visita ao país.
Em 16 de outubro, Fernanda completa 90 anos. O irônico em tudo isso é que não era uma atriz de cinema por vocação. Teve poucos e grandes papéis, mas sua grande, ou melhor, imensa praia sempre foi o palco. O que poucos sabem é que, jovenzinha, nos anos 30 e 40, era louca por filmes. Via três, quatro por semana. Era fã de Bette Davis, Greta Garbo, Marlene Dietrich, Laurence Olivier.
Foi Sérgio Britto, amigo e parceiro em vários trabalhos, quem indicou Fernanda, então com 34 anos, ao cineasta Leon Hirszman (1938-1987) para o papel principal de A Falecida, adaptação da peça homônima de Nelson Rodrigues. A personagem, assim como a própria atriz, é uma recatada mulher do subúrbio, obcecada pela ideia da morte e que trai o marido com um milionário (Paulo Gracindo) e acaba consumida pela culpa. Numa das cenas mais significativas (e hoje clássicas) do longa, que deu à atriz vários prêmios, Fernanda toma banho de chuva no jardim da casa da protagonista.
Embora tenha participado de alguns títulos menores nas décadas de 1960 e 70, o primeiro trabalho importante de Fernanda no cinema desde A Falecida foi Tudo Bem (1979), misto de comédia e crônica social dirigida por Arnaldo Jabor.
No filme, um dos mais interessantes do cinema nacional do período, ela e Paulo Gracindo voltaram a contracenar como um casal da classe média carioca, ainda vivendo sob o regime militar, que vê seu cotidiano se transformar quando o apartamento onde mora entra em reforma e a realidade invade a aparente segurança que o cerca. Logo depois, veio Eles Não Usam Black-Tie (1981), seu segundo trabalho com Leon Hirszman e um dos desempenhos mais importantes da carreira de Fernanda.
O filme, adaptação da peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri (com quem contracena no longa), conta a história de uma família de metalúrgicos do ABC num momento nevrálgico da luta sindical por melhores condições de trabalho.
É um filme de esquerda, engajado e político, em consonância com o momento que o país vivia, a transição democrática. Fernanda vive o personagem da mãe, uma mulher forte, resiliente, mas que não perde a doçura diante das adversidades. Pelo trabalho, ganhou o Prêmio Air France de Cinema. Eles Não Usam Black-Tie venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, um dos mais importantes já conquistados por uma produção brasileira.
Indagada sobre seu trabalho favorito no cinema, Fernanda prefere não apontar um título específico, mas cita a interessante comédia dramática O Redentor (2004). “É importante porque é filme do Claudio [Torres, filho da atriz]”; e Casa de Areia (2005). “Esse é do Andrucha [Waddington, seu genro, casado com Fernanda Torres], fiz com minha filha e o considero um dos maiores filmes que o Brasil já fez.” A atriz também destaca o thriller O Outro Lado da Rua (2004), de Marcos Bernstein, no qual vive uma aposentada que assume o papel de vigilante de sua vizinhança em Copacabana, denunciando à polícia crimes e ações suspeitas que observa da janela de seu apartamento. No filme, tem um caso amoroso com um vizinho, interpretado por Raul Cortez, numa das últimas aparições do ator no cinema.
Depois de ser mãe de Javier Bardem na versão cinematográfica de O Amor nos Tempos do Cólera (2007), adaptação de Mike Newell para o romance homônimo de Gabriel García Márquez, e de participar de O Beijo no Asfalto (2018), nova versão para o cinema do clássico de Nelson Rodrigues, assinada por Murilo Benício, Fernanda faz 90 anos com fome de cinema. Será vista, no fim deste mês, em Vida Invisível, de Karim Aïnouz, vencedor do prêmio de melhor longa-metragem da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes deste ano e escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. Na produção, ela vive o papel da protagonista, Eurídice Gusmão, uma mulher à frente de seu tempo que, nos anos 1950, enfrenta todos os obstáculos para tentar ser o que deseja, uma pianista clássica – quando jovem, a personagem é interpretada por Carol Duarte.
A vida da grande dama, que certamente renderia um filme, e talvez um dia chegue à tela grande, é contada por ela mesma no livro Prólogo, Ato, Epílogo, que acaba de ser lançado pela editora Companhia das Letras, e nos lembra a importância da cultura na identidade de um país. Nele, Fernanda nos lembra que é uma artista para a eternidade.