Ele está arrumado como em poucas ocasiões esteve ao longo desse ano. Passa entre os convivas oferecendo bebidas, depois volta e pega os canapés. Além dele, só tem mais um. Os dois, firmes, formais, os melhores, dividem todo o trabalho. A cabeça lá longe. Tantos outros lugares em que desejaria estar naquele momento. Tantas outras pessoas. Deixasse ele escolher, seriam outras bebidas também. Outra música então, nem se fala. Faz o trabalho pensando no dinheiro e apenas no dinheiro. A quantia é grande o suficiente para fazê-lo aceitar a taxa da noite, mas nem de longe o bastante para impedir seus pensamentos de voarem para fora daquela festa.
A gente comemora depois, falou pra ela antes de sair de casa. Bom, para ela e para o resto da família, que se reuniu na casa dele. Uma festa acontece no lar que administra com todo o zêlo que suas economias lhe permitem, e ele não está lá. Todos entendem. O dinheiro, sempre o dinheiro. Fariam alguma coisa também, se houvesse mais trabalho. A tia sabe cozinhar uma ceia como ninguém, mas nada ao gosto daquela gente. O primo é DJ, mas todas as festas já têm o seu DJ. As que não têm se dão por satisfeitas com uma caixinha de autofalantes que se conecta via bluetooth ao celular do mais animado.
Ali não, ali é uma festa graúda. Tem música, tem luzes alugadas especialmente para a ocasião, e também há uma ceia, com comidas muito mais bonitas do que saborosas. Sabe só de olhar. Ele foi um dos poucos que pegou algum trabalho nesse dia em que as pessoas fazem o sacrifício que for para não trabalhar. Importa é reunir os seus, ver os fogos, fazer os votos, comer e beber bem.
Odeia um pouco a si por precisar trabalhar nesse dia, mas acredita que pequenos sacrifícios como esse serão recompensados num futuro de prosperidade. Por isso limpa o suor da testa, recolhe os copos vazios para a cozinha, valsa com as bandejas e, na hora em que o primeiro serviço acaba, descansa sentado numa banqueta da cozinha junto com os cozinheiros. Como é grande aquele apartamento, ele pensa, comparando de memória com sua própria casa, de quarenta metros quadrados que, com o passar dos anos, conseguiu transformar em oitenta, fazendo puxadinhos na frente e atrás, respeitando o limite do terreno dentro do condomínio fechado. Nem se comprasse as casas à esquerda e à direita teria um apartamento como aquele, com uma vista como aquela, direto para a queima de fogos, na beira da praia.
A cabeça lá longe. Tantos outros lugares em que desejaria estar naquele momento. Tantas outras pessoas. Deixasse ele escolher, seriam outras bebidas também. Outra música então, nem se fala.
Olha para os donos do apartamento e seus amigos. Afora o preço que lhe pagam, que poderia ser maior, não são exatamente más pessoas, se comparados a outros ricos. São educados, respeitosos, não estão fazendo nenhuma orgia regada a cocaína como já testemunhou certa vez em outro trabalho como aquele. Têm regras bem estabelecidas quanto ao que pode e não pode fazer durante o trabalho, mas não é nada espartano. Pode beber três taças do vinho e uma do espumante, para brindar com os seus na cozinha. Ou seja, o outro e as duas cozinheiras, que vão renovando o estoque de louça limpa conforme ele recolhe a suja. É mais do que geralmente oferecem, ele é capaz de garantir para qualquer um que duvida. A sacada, entretanto, está fora de seus limites. Não haverá espaço para espreitar a queima de fogos quando o relógio bater a hora grande, sinto muito, eles disseram, já antevendo uma vontade incontrolável por parte dos contratados de se sentirem parte da vida por um momentinho que seja.
E eis que chega o momento. Agora não precisa abrir as garrafas, há uma para cada três na festa, e seguram ela com força para que as rolhas estourem longe, para fora da sacada. Há um pequeno banho de espumante no chão da sala, mas deixe que depois a menina limpa, tranquilizam os anfitriões. Uma música antiga, americana, toca no moderno aparelho de som enquanto todos se abraçam e assistem às explosões. Ele, da cozinha, ergue sua taça em reação àqueles estranhos, que fazem o mesmo. Não consegue precisar qual dos quatro iniciou o gesto, mas já havia ali uma garrafa para eles que havia sido distribuída entre as taças. Não era o mesmo tipo de garrafa que estava sendo estourada ali na sacada, é claro, mas, de novo, era mais do que geralmente ofereciam.
Ouve os espocos de fora rarearem, e logo tudo termina. Ouve palmas, as risadas, e a música que começa mais uma vez a se sobressair no ambiente. A dona entra na cozinha e chama a todos. As cozinheiras para que limpem o chão da sacada, molhado de espumante, porque senão a casa vai ficar toda melecada de pegada, e aos dois, para que sirvam mais bebidas. Quando todas se levantam, a dona da casa aperta a mão de um por um, desejando feliz ano novo. Tem um sorriso no rosto, que é sincero. Para ela, é sincero. Ele pensa lá na casa de novo, nos abraços que está perdendo, e que terá que recuperar depois. A volta para casa vai ser custosa, ele mora longe. Mais um ano então, diz para si, quase inaudível. A gravata borboleta esmaga de leve sua garganta.