Um botton, um adesivo esquecido numa gaveta velha que nunca mais foi mexida. A imagem de um serzinho desproporcionalmente pequeno, mesmo sem maiores referências na imagem, revelam uma febre que existiu em um determinado lugar por um determinado tempo: Eu acredito em duendes, diz a inscrição acima da enorme cabeça da figura retratada. Ondas que vêm e que vão, mas lembro dessa ter acontecido em algum momento no começo da década de noventa. Estávamos místicos, animistas em recuperação buscando nossa reconexão antropomórfica com a natureza. Por que duendes? Tolkien havia plasmado em definitivo algumas figuras mágicas no inconsciente coletivo, e a tardia onda hippie brasileira arrastou essa mania até o período da minha infância.
A febre vinha também na forma de memorabília: um bonequinho de plástico peladão com cabelinhos coloridos e arrepiados prometia realizar desejos ao tocar em seu cabelo, e lojas em redutos hippies do país – Mauá e Penedo, no Rio de Janeiro, para citar duas que visitei na época – chegaram ao cúmulo da picaretagem de vender potes de vidro vazios prometendo haver duendes dentro. Uma tampa de cortiça e um bilhete amarrado ao gargalo por um barbante colorido explicava que tipo de entidade da natureza estava capturada ali, e que faculdades mágicas possuía. Compravam-se potes com duendes do amor, do trabalho, da riqueza, enfim. Os guardiões da natureza eram os responsáveis pelos nossos problemas demasiadamente humanos.
Queremos um Deus, mas só conseguimos acreditar em algo mais próximo de um humano demasiadamente humano. Narcisos, duvidamos e desconfiamos de poderes superiores a nós. Eis o homem.
A verdade é que o conceito de monoteísmo é difícil de ser assimilado. Muito embora o homem tenha criado Deus à sua imagem e semelhança e em que se pese o desejo humano de ser onipotente, uma parte de nosso interior honesto nos trai em nossa sanha absolutista. Tentamos com toda força, mas não conseguimos imaginar o senhor absoluto que quisemos para nos governar. Aquele que tudo vê, tudo pode e tudo sabe não parece tão humano e – o que é ainda mais grave – o fato Dele nos microgerenciar parece uma ofensa a uma entidade que criamos com tanta pompa. Daí as outras divindades, os semideuses – anjos e toda sua complexa hierarquia que compreende pares de asas e interferência direta em nosso bem estar cotidiano; santos, os quebra-galhos celestes que morreram mortes horríveis para nos ajudar a pagar uma dívida ou marcar um gol; entidades espíritas e umbandistas que tiram nossas dores com a sabedoria trazida de muitas vidas acumuladas; Ninfas, salamandras, elfos, silfos e toda a exuberante fauna elemental que não podemos alcançar com nosso olhos; Papai Noel, o Coelho da Páscoa e os demais responsáveis por pequenas recompensas em nome de um ser ainda maior e mais mágico que se esconde entre as nuvens ou entre as dimensões euclidianas e que, muito embora possa estar em todo lugar e fazer tudo, prefere delegar funções em nome de um escrutínio mais específico.
Não sabemos a dimensão dos poderes dos santos nem exatamente a onipresença dos anjos; pessoas doentes curadas por entidades muito frequentemente continuam doentes. Mas parecemos confiar mais nos poderes destes do que na fonte original. Queremos um Deus, mas só conseguimos acreditar em algo mais próximo de um humano demasiadamente humano. Narcisos, duvidamos e desconfiamos de poderes superiores a nós. Eis o homem.
Não lembro disso, porque era muito novo, mas minha mãe conta que, por insistência minha, acabou comprando um adesivo para o para-choque do carro. O adesivo parecia ser a minha resposta infantil ao misticismo da época. Um duende partido ao meio e o dizer “eu atropelo duendes”.