Ele chega numa CB650 para buscar a minha moto. Deixa a dele no lugar. Diz que não é muito a dele ficar lavando, porque é mais chato do que carro. Tem que pegar a escovinha e enfiar em todos os sulcos do motor. Usar querosene ou WD-40. Posso usar diesel, mas você não vai gostar do cheiro, diz. Não para de dizer coisas, nunca. Do momento em que chega até o momento em que arranca com a minha moto, fala. Abre uma bolsa térmica vermelha de bolinhas brancas para que eu veja o interior. Está repleta de bombons caseiros, que a mulher faz e que todo dia vende. É a correria, você sabe, eu não paro nunca.
Recuso os bombons, mas agradeço a disponibilidade de seu tempo para dar um trato na máquina. Achei que cairia bem, uma vez no semestre algo mais detalhado e bem feito do que a lavagem amadora que eu faço de tempos em tempos. Geralmente me preocupo mais com os cromados, e menos com as partes que estão sempre sujas, como rodas e a proteção da corrente. Ele faz isso, em pouco tempo. Pago para não gastar o dia inteiro em algo que um profissional consegue fazer em um par de horas. É questão de esfriar o motor e começar o serviço, garante o retorno antes que eu bata o ponto. Me entrega um cartão. Ali não diz que lava carros ou vende bombons, mas que aluga veículos de luxo antigos para casamentos e ensaios fotográficos. O que é que você não faz, eu pergunto rindo. Eu me viro com o que tiver, diz fechando a viseira e subindo a rampa da garagem. Ouço o ronco do motor bicilíndrico sumir na rua.
O trabalho hoje em dia é assim mesmo, demasiado para um salário sempre insuficiente.
O dia transcorre modorrento, o sol forte não levanta suspeitas de dentro da sala com ar-condicionado. Todos parecem estar com sono no meio da semana, desde o vigilante até o cão que passeia na coleira na calçada. Um trabalho burocrático, esse meu, mas é fixo e o dinheiro cai sempre no mesmo dia do mês, sem nunca atrasar. Mesmo com a segurança da carteira assinada, eu, assim como ele, também me viro para complementar a renda. Escrevo textos para fora, faço mediações, leituras de parecer, o que vier. O trabalho hoje em dia é assim mesmo, demasiado para um salário sempre insuficiente. É claro que não estou correndo de um lado para o outro na rua, pelo contrário. Minha mesa é esse deserto dos tártaros, e há quem sonhe com algo assim. Mas também é pouco. É preciso labutar, brigar contra a incerteza do amanhã, juntar dinheiro na marra para se permitir sonhar. Resolvo ir ao banheiro e percebo as olheiras se aprofundando em meu rosto. É a velhice, o pouco sono e a depressão desses tempos, mas também é o trabalho. Eu não paro nunca, vocês sabem.
As horas passam e ele não traz a minha moto de volta. Começo a me preocupar, mas a preocupação é pouca. Mínima. É só o horário mesmo, atender aos compromissos algures de maneira pontual. Bato o ponto finalmente e desço até a portaria. Quando tiro o pé do último degrau, o guarda avisa que ele chegou. Desço até a garagem já com o meu capacete em mãos e encontro uma motocicleta reluzente. Exibindo meu reflexo em peças em que eu jamais me vi. Tem um cocô de passarinho seco na base do espelho, que ele não viu. Tira com a unha na hora, entre envergonhado e furioso, provavelmente com a negligência de algum funcionário. Pede mil desculpas, é seu primeiro serviço para mim, não gostaria de errar. Eu digo que acontece e lhe estendo o dinheiro. Ele pega rápido, não porque eu possa mudar de ideia, mas porque age dessa maneira sempre apressada. Não para de falar por um minuto. Diz que já vendeu todos os bombons daquela bolsa térmica enorme e vermelha de bolinhas brancas. É aí que eu noto que sua moto não está mais na garagem. Havia deixado ela ali, na vaga da minha, quando nos encontramos de manhã. Pergunto se alguém pegou ela a seu pedido. Que nada, fui eu mesmo, rapaz, tô andando pra cima e pra baixo aí desde as sete da manhã, diz ele subindo a rampa em direção a um sedan que está estacionado na calçada. Eu não paro nunca, você sabe.