A peça Estrangeiras, de José Luís Peixoto, retrata o encontro de três mulheres lusófonas — uma brasileira, uma portuguesa é uma cabo-verdiana — numa sala da polícia migratória dos Estados Unidos. O que começa com um desfile de preconceitos e lugares comum, dos quais a brasileira é a maior vítima, por ser ignorante sobre Portugal e Cabo Verde, logo se inverte, quando se descobre que a brasileira, na verdade, é piauiense. O estado nordestino tem mais pessoas em sua capital do que em todas as ilhas de Cabo Verde e, ainda assim, as outras mulheres nada sabem sobre ele.
Quis começar essa crônica com essa pequena sinopse porque recebi na última semana um casal de amigos de Teresina. A todo momento, durante nossas conversas, eles me contavam histórias sobre o Piauí, e também sobre o Maranhão, estado vizinho à Teresina, separados apenas pelo rio Parnaíba. O ímpeto e a vontade para contar todas aquelas histórias que ouvi nos últimos dias têm suas raízes: a primeira é a consciência do abismo cultural que nos separa, e a segunda é a vívida compreensão de que experienciam diariamente um estado de anormalidade, em que prevalecem a miséria, a violência e um desrespeito pelas mulheres e pelos gays que vai muito além de meia dúzia de piadas pejorativas. Era importante para eles que eu soubesse que a vida lá em cima é uma coleção de absurdos dos quais minha normalidade alienante não permite sequer imaginar.
Era importante para eles que eu soubesse que a vida lá em cima é uma coleção de absurdos dos quais minha normalidade alienante não permite sequer imaginar.
Nem Teresina é uma República Central Africana, onde a miséria se isola do mundo pela falta de conhecimento do entorno, nem Curitiba é uma Dinamarca, onde talvez seja impossível ignorar que o resto do mundo difere brutalmente do cotidiano feliz e funcional dos nórdicos. Temos, talvez, a dose certa de pequenos problemas, o suficiente para nos julgarmos parte do todo e, com isso, enxergar pouco mais de um palmo diante da cara. Da mesma forma, aos olhos teresinenses, o esplendor europeizado de um Jardim Botânico pode fazer um corta-luz para o interior do estado, com cidades que ostentam níveis estratosféricos de analfabetismo e pobreza. Talvez tenha o mesmo efeito para os tais separatistas que pedem a desassociação sulista do resto do país.
Só quem não vive em um completo estado de absurdo pode aspirar a ser universal cantando a própria aldeia. Mas Tolstoi nunca poderia prever o sucesso e o exotismo de Jorge Amado, com suas gangues de capitães da areia, suas guerras por terras do sem fim e seus dois maridos de Dona Flor. Podemos ser carentes de uma pretensa universalidade, mas somos, mais ainda, necessitados de enxergar a vida como ela é. Ainda bem que temos amigos que não nos privam disso.