Não sei precisar o número exato, mas há uma quantidade x de livros a se possuir para que a sua biblioteca particular se torne o seu maior xodó. Antes desse número, não existe uma biblioteca a ser preservada, apenas alguns livros empilhados ou enfileirados em uma parede. A devoção tem seu motivo, afinal: uma biblioteca é uma construção constante e diligente, e se cultiva como a jardinagem. É preciso criar espaço em primeiro lugar, e depois, muita leitura e novas aquisições. Os livros ruins surgem como ervas daninhas na mesma medida em que o leitor se torna mais crítico, e é preciso extirpá-los com uma igualmente criteriosa seleção destinada ao sebo de sua preferência. Dessa maneira, autores se tornam abomináveis enquanto outros são consagrados definitivamente no panteão das grandes obras.
A limpeza e a classificação aos poucos se tornam hobbies secundários à leitura. Deixar o tempo fazer a sua maldade sobre sua criação cuidadosa é inadmissível. Também como a jardinagem, sem a manutenção adequada, um matagal caótico surge diante dos seus olhos em pouco tempo. Tirar os antigos da estante para passar um pano é algo que acontece de tempos em tempos. Da mesma forma, mudar livros de lugar e encontrar uma classificação que sirva aos seus propósitos, seja por ordem alfabética, país de origem ou simplesmente a boa e velha taxonomia afetiva que tanto predomina nos lares letrados é imprescindível.
Nossa biblioteca é o segredo mais público que existe.
E há, claro, a compulsão em alguns que precisa ser controlada. Uma média de 20% de livros não-lidos, acredito, deve ser o mais aceitável. Deixar chegar nos 50% é o maior sinal da derrota, e algo é preciso ser feito. O que é preciso ser feito, você perguntaria? Ora, ler e ler ainda mais um pouco. A beleza da biblioteca é a beleza dos livros vencidos, aqueles que se tornam parte da vida, ou parte da memória ou meramente os que dividiram alguns momentos importantes com a sua rica vida interior. Ler e não entender nada pode ser um crime ainda maior do que não ler, então é preciso estar atento.
No fundo, a razão pela qual nos levamos a cuidar tão diligentemente de nossa biblioteca pessoal é o desejo e a esperança de que ela, de alguma forma, diga algo a respeito de nós mesmos para quem não nos conhece tanto na intimidade. Algo que nem sempre estamos dispostos a admitir ou mesmo dispostos a reconhecer. Por meio de lombadas, nossos livros comunicam-se com o mundo letrado aquilo que nos é íntimo, e que não ousaríamos confessar. Nossa biblioteca é o segredo mais público que existe.