Lembro como se fosse ontem.
A saída da aula. Meio-dia e vinte. Um sol de rachar e todos nós insistíamos em usar abrigos de inverno. No meu bolso, havia um papel dobrado. Era um poema, que havia escrito na aula a pedido da professora, com o tema da primavera. Os clichês me encantavam pouco, por isso tinha composto minha obra com dois versos. Procurara ser irreverente, desconstrutor de imagens óbvias. No fim, ele de fato destoou de toda a produção da classe.
Levava no bolso, dizia. Queria alcançá-la, para mostrar meu poema. Queria validação, queria que ela soubesse que eu era divertido, que podia compensar minha falta de beleza física com originalidade artística – de verdade, a última esperança dos feios. Apertei o passo sem correr porque não queria parecer entusiasmado demais, de modo que quem observasse a cena concluiria dali que eu simplesmente andava mais rápido do que as outras crianças.
Tudo pensado, o coração palpitando. Uma cutucada desajeitada em seu ombro, ela se vira sem se dar ao trabalho de parar a caminhada, consciente de que íamos ambos para a mesma direção. Faz um cumprimento polido, mas seco. Sabe da minha paixão, que é uma paixão que já dura alguns pares de anos – naquela idade, o equivalente a uma vida inteira – e sabe que para a saúde de sua imagem, não pode se associar a alguém como eu. Seria deixar o sarrafo do campo amoroso eternamente baixo. Ela já havia pensado em tudo isso e eu sequer sabia que ela sabia. Sabia que não era o primeiro nem o segundo, muito menos o décimo quinto a ser escolhido para fazer par na quadrilha, sabia que era uma das únicas crianças que estava acima do peso, mas nada além disso.
Queria alcançá-la, para mostrar meu poema. Queria validação, queria que ela soubesse que eu era divertido, que podia compensar minha falta de beleza física com originalidade artística – de verdade, a última esperança dos feios.
Tirei o papel do bolso e perguntei se ela queria ler o meu poema. Ela disse que sim, sempre muito polida e, quem sabe, não de todo resoluta em sua rejeição tácita. Mas quando passou os olhos pelas linhas, a leveza de seu rosto deu lugar a uma escuridão opaca. Devolveu o papel pra mim ao mesmo tempo em que olhava fundo nos meus olhos. Naqueles olhos vi impaciência, raiva, estafa. Falou entredentes e ao mesmo tempo articulou cada palavra para que eu não perdesse um milímetro da mensagem.
“Você tem merda na cabeça, né?”
Era aquilo. Era tudo. O peso da palavra chula, na boca de uma criança, era dobrado. Na boca de uma criança doce, triplicado. Aos meus ouvidos, potências cósmicas. Para a criança que eu era na ocasião, foi um golpe fatal. Naquele dia, renasci outro. Forjado no desprezo e na maldade infantil, fui mudando de pele até ser todo rocha. Meus olhos grandes se espremiam nos fundos de minhas sobrancelhas. Passaram a dizer que eu tinha cara de mau. Talvez eu sempre tivesse sido mau. Uma pessoa má, que faz maus poemas e reage mal a tudo. É o sangue árabe, alguém diria. Mas era só o amargor do petisco tamanho amostra grátis que a vida me colocava na boca naquele momento. Ali entendi o que significava ser inconveniente, inadequado.
Entendi que a possibilidade de normalidade estava para sempre perdida. Havia sido envenenado pela singularidade e me viciado nela. Ao longo dos anos que viria, procuraria me distanciar das pessoas normais. Morria de medo de que me vissem como uma pessoa normal. Se esse erro fosse cometido, estaria sujeito à rejeição das pessoas normais.
Ela nunca soube o que fez em mim. Nunca suspeitou da transformação que operou em uma vida. Cresceu e se tornou uma mulher linda, uma pessoa bondosa, caridosa, politizada e inteligente. Casou-se e foi morar fora. Não consigo imaginar o que seria de mim sem esse episódio. Talvez fosse bom e caridoso também. Talvez fosse mais como ela, vivendo uma vida inócua, transformando pessoas normais em gauches com bordoadas inesperadas. Tenho muito cuidado com isso hoje em dia. Nunca deixo que ninguém pense que eu sou alguém inofensivo. Não consigo pensar em covardia moral maior do que pegar alguém despreparado dessa forma. Agressivo-me como um aviso, como a ducha antes do mergulho que impede o choque térmico, como a venda diante do olho do fuzilado. Sou mau, mas quero o bem. Não desejo aos outros segurança, desejo força. Caso contrário, a pancada virá, invariavelmente. O que não sabemos é o que poderá renascer diante disso.