Todo mundo se assusta com barulho. A menina também, mas não demorou para se recuperar do susto. Estava dormindo em seu quartinho no final do corredor da casa. Levantou meio cambaleante e caminhou vagarosamente de sua cama até a porta e depois da porta até a outra ponta do corredor, onde estava a sala de estar, em um misto de sonolência e cautela. Mesmo de longe e com os olhos entreabertos, pôde ver que a estante de madeira escura que ficava na sala apresentava alguma mudança. Era o aquário, não estava mais lá entre os volumes de enciclopédia e listas telefônicas. Estava no chão, espalhado em muitos caquinhos, e todos os peixes estavam espalhados pelo piso de taco. Alguns ainda respiravam e se mexiam, outros estavam inertes sobre uma fina linha d’água que se espalhava pelo cômodo e infiltrava tapetes e outros móveis. Tomou cuidado para não pisar em nenhum pedaço de vidro, mas acabou ferindo o pé com um caco minúsculo, grande apenas o suficiente para lhe rasgar uma parte da sola.
Não gritou nem fez escândalo como a maioria das crianças de sua idade. Resolveu ir procurar a mãe, que provavelmente estava na cozinha, contígua à sala. Enquanto o detalhe do aquário fora da estante foi percebido de longe, a cozinha tingida de vermelho demorou para ser assimilada por seus olhos ainda confusos do sono interrompido. Pia, armários, a torradeira branca, fruteira, lixeira e bancada estavam rubros de um vermelho escuro que se tornava mais claro nas extremidades. Em um canto da cozinha, com as pernas para cima e os braços estendidos no chão vermelho estava a mãe, ou parte dela. Não se via a cabeça, mas uma maçaroca de carne e ossos com pequenos pedaços ao redor e alguns fios de cabelo negro espalhados pela poça como infinitas cobrinhas.
“Enquanto o detalhe do aquário fora da estante foi percebido de longe, a cozinha tingida de vermelho demorou para ser assimilada por seus olhos ainda confusos do sono interrompido.”
Não parecia a mãe, parecia uma boneca, e durante algum tempo considerou essa hipótese. Sequer saberia se tratar da mãe não fosse a sapatilha vermelha de camurça gasta que ela usava para cozinhar, o vestido floral branco e o avental azul que usava habitualmente. Mas naquele corpo, toda essa vestimenta parecia estranha, como se junto da vida, fosse embora também toda a personalidade e o propósito daquelas peças. Seria possível que o corpo de sua mãe poderia tão rapidamente se tornar aquela coisa tão desajeitada e silenciosa que estava ali, imersa na bagunça do sangue espalhado e com as pernas apoiadas na parede?
Olhou ao redor, em busca de uma explicação. Encontrou o silêncio. E se assustou com ele também.