Formada em jornalismo na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 1987, Cynara Moreira Menezes, mais conhecida como Socialista Morena – nome da coluna / blog que assinou durante pouco mais de sete anos na revista Carta Capital -, iniciou a carreira no já extinto Jornal da Bahia, em Salvador.
Doutora em Literatura Espanhola e Hispano-americana pela Universidade Autônoma de Madri, trabalhou, somadas idas e vindas, por dez anos no jornal Folha de São Paulo, período no qual diz ter escrito como quis. “Ninguém nunca mudou meu texto e jamais adicionaram nem uma frase sequer que eu não tenha apurado, ao contrário do que viveria nos oito meses que passei na Veja“, escreveu a jornalista em 2013, ano em que cancelou sua assinatura do jornal.
O nome Socialista Morena tem inspiração no antropólogo, político e escritor Darcy Ribeiro – e, em alguma medida, também em Leonel Brizola – a quem o “socialismo moreno” seria uma forma de socialismo à brasileira ou, nas palavras de Brizola, “nada dos figurinos de importações, quer de Moscou, quer de Nova York”. Para eles, “socializar” significava democratizar os meios de produção, torná-los acessíveis a todos.
Ideologicamente de esquerda e de opiniões fortes não apenas em política, Cynara mantém desde o início do ano o blog de jornalismo Socialista Morena de maneira independente, no qual leitores podem contribuir financeiramente, através de doações e/ou assinaturas. A jornalista, que também conta com passagens por O Estado de São Paulo, IstoÉ, Veja e Vip, gentilmente cedeu seu tempo para conversar com a Escotilha, neste que é o terceiro capítulo da série Diálogo & Interlocução (leia as outras entrevistas já realizadas clicando aqui).
Escotilha » No pleito eleitoral de 2014, artistas, intelectuais e cidadãos comuns criticaram a abordagem quase inexistente sobre cultura. Ao que você credita esta não-abordagem? Cultura é uma forma de fazer política?
Cynara Menezes » Eu acho que os políticos em geral (e incluo o PT nisso) têm uma visão muito utilitarista da cultura e das pessoas que fazem cultura. Em geral, elas são utilizadas na hora de ganhar a eleição e depois esquecidas. É charmoso se cercar de artistas na campanha, atrai votos. E os artistas se engajam, são emocionantes e sempre muito bonitas as manifestações que eles organizam e protagonizam. Rendem boas imagens no horário gratuito de TV. Mas o que vejo acontecer, infelizmente, é que a cultura é abandonada tão logo o político se elege. Vira um número no orçamento – um número bem pequeno, aliás.
A mídia tradicional sustenta o discurso de que a economia interfere no interesse e no consumo cultural. Do ponto de vista midiático, a cultura é apenas um produto de mercado?
Sim. Pode observar que a cobertura jornalística em torno da cultura gira a partir de lançamentos: cobre-se um músico que está lançando um disco, um escritor que está lançando um livro, um pintor que está lançando uma exposição… A lógica da venda rege a cobertura cultural no Brasil. Além de submisso ao poder econômico, é um pensamento tacanho, provinciano.
Por vezes parece que a imprensa exerce papel preponderante na manutenção do elitismo cultural. Na sua opinião, a cultura no Brasil reflete nossa sociedade? Por quê?
Eu criei uma expressão chamada “muquiranas do conhecimento”. Quem possui o conhecimento no Brasil, a elite, não parece disposto a compartilhá-lo, porque essa é uma forma de manter o poder. Daí o preconceito contra as cotas, por exemplo, e a não aceitação de novas formas de cultura vindas da periferia, como o grafite. Para estas pessoas, existe “cultura” e cultura. A cultura que respeitam é a deles, a que vem de cima.
‘A lógica da venda rege a cobertura cultural no Brasil.’
Qual a parcela de responsabilidade da mídia tradicional na forma como o brasileiro vê e consome cultura? Emendando: a democratização da mídia e os veículos independentes podem colaborar para a mudança deste cenário?
A mídia perpetua essa ideia de que a cultura deve ser propriedade da elite. Esses eventos literários tipo a Flip são bem a cara disso: só uns poucos eleitos podem participar da “grande” festinha da literatura. Acho tão elitista… Claro que os veículos independentes podem colaborar, sobretudo compartilhando conhecimento. Acho que essa é nossa grande responsabilidade social. Deveria ser a da imprensa convencional também, mas eles têm optado por compartilhar ignorância.
Darcy Ribeiro foi um dos maiores críticos ao discurso sectarista na cultura, do erudito versus popular, e defensor do estímulo do Estado para que ela, cultura, cresça. Qual, na sua opinião, a importância do financiamento público à cultura?
Importantíssimo. Só com o financiamento público artistas de classes sociais menos favorecidas podem se dar o direito de se tornar criadores. Desde as épocas mais remotas, os artistas só conseguiam trabalhar ajudados por mecenas, dinheiro privado. Daí a arte estar tão ligada ao poder econômico, à igreja e à aristocracia. Com o financiamento público, um artista não precisa morrer de fome antes de ser reconhecido.
Artistas, país afora, questionam o que chamam de “privilégio aos grupos e artistas consagrados do eixo Rio-São Paulo” nas leis de financiamento. Na sua opinião, isto é uma realidade? Em caso positivo, como os governos deveriam fazer para promover uma distribuição regional equitativa de forma justa?
Os editais têm que alcançar o país inteiro, precisam ser inclusivos também em termos geográficos. Mas acho que isso está acontecendo, pelo menos em termos federais. Mas cadê a verba? O ministro Juca Ferreira e sua equipe estão fazendo um grande trabalho, mas a cultura é prioridade para um governo que se diz de esquerda? Esta, para mim, é a questão central.
‘Com o financiamento público, um artista não precisa morrer de fome antes de ser reconhecido.’
A crise no jornalismo é apenas financeira ou também de credibilidade?
Eu acho que a crise do jornalismo é sobretudo de conteúdo. Os jornais ficaram tão obcecados em tirar o PT do poder que se esqueceram de fazer jornalismo. O que tem para ser lido nos jornais? Nas raras vezes em que abro um, não vejo nada. Quem vai comprar jornais apenas pelas manchetes? É um equívoco. Só os jornais que oferecem um produto diferenciado, rico, vão sobreviver. Nenhum jornal no Brasil ultimamente está interessado em fazer isso. Só a denúncia importa, e jornalismo não é só denúncia.
Com a informação correndo solta pela internet e a crise dos jornais, cresce entre os estudantes de jornalismo a dúvida: como o jornalista será remunerado em um futuro próximo?
Eu não sou pessimista. Vejo futuro em algumas áreas do jornalismo que nunca imaginamos que poderiam sobreviver: o radiojornalismo, por exemplo, está em alta e vai continuar. Outras formas de jornalismo ainda estão engatinhando, como o telejornalismo na web. Quem nos garante que estas novas formas de fazer jornalismo não serão sustentáveis? O que eu sempre digo aos estudantes de Comunicação é que não dá, pelo menos num primeiro momento, para garantir que os salários nos meios convencionais se manterão. O que talvez sirva para, pela primeira vez, nos fazer mais unidos enquanto categoria de trabalhadores.
‘Eu acho que a crise do jornalismo é sobretudo de conteúdo.’
Para finalizar, o financiamento coletivo tem sido uma das saídas para o jornalismo independente. Você e os Jornalistas Livres são, talvez, os maiores exemplos do uso desta estratégia. Você acredita que o leitor compreende a importância do jornalismo “sem rabo preso”, que não trabalhe associado à propaganda? Aproveitando, é possível sobreviver como jornalista independente no Brasil?
Espero que sim. O que sem dúvida tenho percebido é uma carência dos leitores em geral de ler notícias vindas de veículos não identificados com o poder econômico, como acontece com a maioria dos veículos brasileiros. Meu blog, por exemplo, ocupa um nicho existente de leitores simpatizantes do socialismo/comunismo que não se identificam com nenhum dos meios de comunicação atuais. Infelizmente, não possuo capital para ampliar o blog, mas o segmento que represento existe. Estou tentando me manter apenas com o financiamento dos leitores. Após cinco meses de independência, tenho cerca de 700 assinantes, o que ainda não é o suficiente, mas acredito que chegarei lá.
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