Hermann Hesse talvez tenha sido um otimista, a julgar por algumas de suas ficções que hoje podem ser chamadas de romance de formação. Mais do que o envelhecimento físico de seus personagens, parece que eles caminham além do próprio mundo enquanto a história segue – ou pelo menos tentam, como se isso representasse um ritual de passagem que os revelasse algo importante. É meio difícil não exagerar e pensar nessas coisas após ler Demian ou O Lobo da Estepe, publicados em 1919 e 1927, respectivamente.
Olhemos para Emil Sinclair, protagonista de Demian: a narração de seus primeiros anos não tem nada de tão diferente, só uma briga com um colega da escola, atos escondidos da família, é quase banal; até o momento em que Max Demian entra no colégio.
Ele passa a conviver com o protagonista e é como se visse nele algo que o próprio desconhece sobre si, só fala de assuntos inacessíveis e segue uma conduta própria demais. Ambos se aproximam um pouco graças ao tempo, embora Demian matenha certa pose de “você ainda não pode pisar no meu terreno” quando fala com Sinclair; ele é um misto de irmão mais velho, meio protetor e misterioso que Sinclair não teve, quase como um modelo a seguir, ainda que o protagonista não expresse tal sentimento.
Páginas e anos passam, trocam-se as preocupações e as ideias, mesmo sobrando um borrão da infância e adolescência. A narrativa de Emil Sinclair torna-se um romance que se passa mais em seu interior, sem contatos importantes com o mundo “lá fora” (isso existe?), e a comunicação com demais pessoas se restringe ao necessário. Demian quase virou a Itabira Drummondiana, aquela lembrança incômoda, desconfortável e, no caso do Sinclair, ausente. Ele cresce, estuda, começa a dar mais passos por conta e a perceber buracos na própria vida. E Demian retorna a sua vida quase do mesmo além de onde veio, para duplo espanto do protagonista, que não vê marcas claras do tempo no amigo sumido. Continua um cara distante e misterioso, mas dessa vez deixa o menos ingênuo Sinclair pisar em seu terreno, no qual se descobrem nuances menos misteriosas do que realmente são, mas não menos enigmáticas e fascinantes.
Essas duas ficções de Hermann Hesse lidam diretamente com o que forma uma pessoa.
E temos também O Lobo da Estepe, com um protagonista que faz uma boa dupla com Max Demian. Harry Haller é um homem envelhecido com uma visão amarga do mundo, no qual não encontra lugar por ser inadequado a ele. Haller é tão severo com a sociedade quanto consigo, seu intelecto e suas amarguras acumuladas lhe servem de motivos para se avaliar continuamente, vivendo em um mundo tão interno e pessoal que parece viver mais nele do que no mesmo chão que os demais pisam. Seus contatos tornam-se ainda mais problemáticos após ter visitado uma casa e, por uma combinação caprichada de idealismo e sinceridade, confirmar o próprio desajuste no mundo.
Haller menciona repetidas vezes um manuscrito que dá nome à narrativa, onde se lê sobre a dupla natureza que possui: aparência de humano e interior de um lobo, cuja força se confunde com fraqueza enquanto reconhece a solidão no seu íntimo. O dito cujo Lobo da Estepe é quase uma segunda história dentro da principal graças à interpretação do protagonista, mas na verdade a complementa – nós ficamos sabendo mais do personagem do que ele de fato desconfia sobre si. A mudança crucial da narrativa é quando Harry Haller topa com uma mulher que rompe (um pouco) seus padrões de pensamento e principalmente ação. Ela não o seduz, nem o dopa ou o promete grandezas, mas o que o apresenta é suficiente para ele sair um pouco da autoflagelação moral a que se reduz.
Essas duas ficções de Hermann Hesse lidam diretamente com o que forma uma pessoa. Sem prometer uma resposta absoluta, ele faz Emil Sinclair e Harry Haller saírem de suas redomas e os choca, ainda que de leve, apresentando-os a pessoas com práticas singulares e ordinárias o bastante para revelar em que areia movediça os dois estabeleceram suas vidas. Sobram devaneios filosóficos e introspecções pesadíssimas em processos de misto autoconhecimento, tão exagerados quanto necessários; para serem largados em um canto porque a vida fora do intelecto pede ações para ontem. O mundo não acabou e nem vai, tampouco alguém pediu uma resposta pronta; é apenas um passo, um levantar de onde esses dois personagens estão, e pode bastar mais do que eles imaginam. Hesse teve seu lado otimista ao escrever sobre isso.