“O universo (que outros chamam a Biblioteca) é composto de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais”. Assim Jorge Luís Borges iniciou “A Biblioteca de Babel”, um conto que pode servir como apresentação de toda sua obra. De qualquer ponto do hexágono podemos ver os demais andares em sua ordem, e tanto ela como a imensidão dessas galerias pode nos impressionar e absorver como se estivéssemos prestes a dar um passo rumo a uma jornada cujo destino é uma incógnita.
Se a viagem cósmica por uma biblioteca, aliás, pela Biblioteca, soar exagerada, tudo bem. O autor deixou um caminho mais próximo da Terra, escreveu o nome do lugar em um bilhete, “Jardim das Veredas que se Bifurcam”. Receitou o lugar como um amigo nos indica um cantinho para onde viajar e curtir o feriado.
Aceitei o convite e me ferrei. Borges era esse mesmo da foto no livro, essa pose solene de quem se julga contemplando o universo, talvez aparente seriedade, mas não acredite nisso. O Jardim é uma forma de se perder com os pés no chão, mas nele ficam apenas por uma casualidade do narrador – “pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abrangesse o passado e o futuro e implicasse de modo algum os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de perseguido”.
Pulei para outras paginas, “O Aleph”, “Deutsches Requiem”, “A Outra Morte”, a mesma sensação de ‘me perdi’ dos já mencionados. Cada conto parece ter saído de uma referência diferente mesclada a experiências fictícias ou reais (isso não importa muito) do autor, sem ficar claro se a origem levou à narrativa ou o contrário, pois Borges foi responsável por uma atmosfera cujas camadas de suspense, erudição e absurdo se combinam.
Borges foi responsável por uma atmosfera cujas camadas de suspense, erudição e absurdo se combinam.
“O Outro” parece um sonho, onde o narrador encontra com uma versão envelhecida sua e, não bastando o susto, tenta dialogar com ela sem imaginar que seu destino é se tornar aquele que está em sua frente. “Casa de Astérion” é contado por uma suposta entidade, onde o divino e o humano parecem um só com um narrador entediado, algo que pode remeter a mitologia greco-romana com deuses poderosos e toques bem humanos. Também há um conto com uma homenagem direta a Howard Phillip Lovecraft, é quase uma forma de dizer ‘meu conto pode não ser tão bom quanto desse cara, mas eu gosto do que ele fez e quero homenageá-lo com o meu conto’.
Mais incrível ainda é que a escrita de Borges soa espontânea e sem ar de quem quer se fazer de culto, e não soterra a imaginação de quem lê com minúcias paragrafais. Já tentei imaginar como ele cultivava esses jardins, e achei a resposta em Sobre os Sonhos e Outros Diálogos, compilação de entrevistas semanais que o autor argentino concedeu a Osvaldo Ferrari. Ferrari diz que ao conhecer a obra e ao autor se tem a impressão de existir uma ordem à qual o escritor “guarda rigorosa fidelidade”. “Eu gostaria de saber qual é”, Borges responde. E ri.
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