Lima Barreto foi perseguido pelo estigma da loucura, do alcoolismo e da suposta degeneração genética, fruto das ideias eugenistas da época. Também foi um dos autores mais combativos, que lutou contra o pensamento racista na época da Primeira República, sem poupar esforços para evidenciar as farsas “científicas” daquele momento: de que negros e mestiços eram biologicamente inferiores aos brancos.
Além disso, passou por diversos episódios de racismo ao longo da vida e essa ferida transbordou para a literatura e suas crônicas. Lima também não deixou de criticar as engrenagens da imprensa e da literatura, o sistema de compadrio que fazia com que mediocridades literárias florescessem. Também por conta disso, sua vida profissional foi bastante prejudicada.
Jogado de lado, morreu na pobreza e foi relegado ao status de “pré-moderno” – já que moveu “as águas estagnadas da Belle Époque, revelando, antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional” e “permitiu à realidade entrar sem máscara no texto literário”, como nos diz Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira. Morreu aos 41 anos, no mesmo ano em que a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas a dúvida que fica em mim é: e se Lima fosse da elite, seria ele considerado um “pré-moderno”?
Uma das críticas realizadas por Lima Barreto foi à “cultura do doutor” e ao pensamento moderno ocidental, crítica também marcada por sua ativa anti-racista. Essa reflexão fica bastante clara nos textos de Diário do Hospício & O cemitério dos vivos, publicados juntos pela Companhia das Letras em 2017.
Lima foi duas vezes internado no Hospital Nacional de Alienados. Em sua última internação, ocorrida no fim de 1919 até 1920, o escritor fez registros sobre a situação do hospital, criticou a aplicação da medicina moderna e escreveu um depoimento bastante profundo, chamado Diário do Hospício. Dessa análise sobre sua saúde, as origens da loucura e o excesso de conhecimento técnico dos doutores, Lima escreveu o romance O cemitério dos vivos, refletindo suas vivências no hospital.
Em seus textos, a primeira situação que fica clara é a de um sistema opressor. De acordo com Lima, a humilhação começa pelo trajeto até o hospital, quando o doente é violentamente levado por um camburão apertado, sem apoio e com uma viseira, permitindo o olhar curioso dos pedestres, “um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos”.
Em seus textos, a primeira situação que fica clara é a de um sistema opressor.
Chegando no hospital, Barreto descreve o desconforto de ter um médico imposto e das violências e desrespeitos da polícia. O terrível nessa coisa de hospital é ter-se de receber um médico que nos é imposto e muitas vezes não é da nossa confiança: “Além disso, o médico que tem em sua frente um doente, de que a polícia é tutor e a impessoalidade da lei, curador, por melhor que seja, não o tem mais na conta de gente, é um náufrago, um rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e desgraça podem ainda ser úteis à salvação dos outros, e a sua teima em não querer prestar esse serviço aparece aos olhos do facultativo como a revolta de um detento, em nome da Constituição, aos olhos de um delegado de polícia. A Constituição é lá pra você?”.
É dessa situação de descaso que Lima descreve o Hospital de Alienados como um “cemitério de vivos”, com muitos corpos negros largados lá para morrer. E a observação de corpos pretos dentro do espaço não é à toa. Lima logo começa a criticar as origens e classificações da loucura. Um dos pressupostos colocados pelo autor é que, mesmo vivendo e anotando todos os tipos de patologias que encontrou, não conseguiu encontrar uma “espécie” ou “raça” de loucos, mas que ali “há loucos só” – frase que marca não só a singularidade dos doentes enquanto sujeitos, mas também como solitários.
Essas observações são aprofundadas ao falar sobre a cultura do doutor, um fetiche de título que supõe a aplicação acrítica de teorias europeias ou americanas nas realidades brasileiras – sem reflexão ou tradução para a cultura local. Sobre um dos médicos do local, Lima diz: “não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer”. Dentro desse cenário, Lima também escreveu.
Lima não deixa as relações sociais fora dessa leitura. Aprofundando, ele se pergunta se, caso a loucura seja realmente genética, não seriam todos loucos de alguma forma, de acordo com os ancestrais e as hereditariedades? Ele também se pergunta sobre as razões da bebida ser considerado um fator para loucura, mas fatores como amor, dinheiro, posições e títulos serem ignoradas.
Os relatos são profundos, marcados pela solidão e abandono do escritor. Refletem sobre as violências sofridas em suas diversas esferas da vida, sem deixar de lado um posicionamento crítico sobre os médicos e as engrenagens políticas. Esse contraste deixa claro o trajeto do “triste visionário”, como Lilia nomeia a biografia do autor, que mesmo nas adversidades não abandona sua postura ativista. Como disse certa vez, “eu não canso nunca de protestar. Minha vida há de ser um protesto eterno contra todas as injustiças”.
DIÁRIO DO HOSPÍCIO & O CEMITÉRIO DOS VIVOS | Lima Barreto
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 308 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.