Colaboraram Alejandro Mercado e Walter Bach.
Uma sociedade plural se faz quando propomos o debate. Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, A Escotilha procura refletir sobre a produção e representação da mulher na literatura.
Em um mercado editorial restrito, em que as mulheres não possuem a devida visibilidade, surge o projeto Leia Mulheres, inspirado na iniciativa da escritora Joanna Walsh, que propôs o #readwomen2014. Para este especial, conversamos com Emanuela Siqueira, integrante do grupo Leia Mulheres, pesquisadora de literatura, principalmente da escrita por mulheres.
A Escotilha: Como surgiu o grupo Leia Mulheres e como você o conheceu?
Emanuela Siqueira: O projeto/movimento Leia Mulheres surgiu inspirado no Read Women, ou melhor, #readwomen. O pontapé inicial veio da designer e escritora britânica Joanna Walsh, numa tentativa de provocar os leitores a falar de suas autoras favoritas. O projeto começou no Twitter e foi ganhando a internet. Na época, ela fez um design bacana de marca-paginas a fim de incentivar um “começo” para quem ainda não refletia muito sobre ler mulheres. Eu acompanhei toda movimentação em 2014, já pesquisava autoria de mulheres na graduação e acabou que a minha melhor amiga, a Michelle Henriques, se juntou a Juliana Gomes e a Juliana Leuenroth e tornaram o movimento físico através de clubes de leituras e ações.
Todas já tinham experiência em clubes de leitura, mercado editorial e outras ações feministas. Depois de ver como estava sendo bacana o funcionamento do clube em São Paulo e em seguida no Rio, propus que fizéssemos um também em Curitiba. A Lubi Prates – que é poeta e edita a Revista Parênteses – topou a parceria e desde então fazemos os encontros mensalmente em Curitiba, escolhendo uma obra – levando em consideração a variedade de classe, raça, nacionalidade e etc – e discutindo em grupo.
Fazemos os encontros mensalmente em Curitiba, escolhendo uma obra – levando em consideração a variedade de classe, raça, nacionalidade e etc – e discutindo em grupo.
Quais temas costumam ser associados às mulheres na literatura?
Que temas costumam ser associados aos homens na literatura? Com certeza a pessoa que fosse responder isso iria gaguejar e ficar um pouco puto com essa pergunta. Pois bem, nenhum tema deveria ser associado às mulheres na literatura. Autores são autores e deveriam ser associados ao seu estilo, na sua força criadora de criar jogos intrincados com os leitores, né? Infelizmente, o que existe é um direcionamento do mercado editorial para determinados assuntos e estilos. Desde o século XVIII / XIX, as mulheres foram associadas a um estilo dramático, que envolvesse relacionamentos sonhadores ou mesmo à temáticas pueris, sem grandes questionamentos existenciais. Parece que esqueceram de obras como Frankenstein, só para citar uma, em que Mary Shelley praticamente inventou a ficção científica, dando vida a um dos personagens mais recorrentes da cultura pop: o monstro de Victor Frankenstein. Sem contar como sempre preferem ler obras da Jane Austen, Irmãs Brönte e mesmo a George Eliot apenas analisando a superfície, sem prestar atenção nas relações e ações dos personagens, como se fossem obras menores, que apenas tratam de assuntos como vestidos e festas.
Nenhum tema deveria ser associado às mulheres na literatura. Autores são autores e deveriam ser associados ao seu estilo.
Chegando no século XX e XXI, o número de escritoras expande ao mesmo tempo que o mercado editorial ganha mais espaço e força comercial, então são dois lados: mais autoras, porém, um maior direcionamento de público. Um livro como Um Teto Todo Seu, ensaio da Virginia Woolf sobre a falta de grana como empecilho para mulheres escreverem, ganhou uma capa toda rosa aqui no Brasil. Ué, mas homens não podem ler o livro? E mulheres que não se identificam com a cor? Então é uma série de bobagens que costumam ser associadas à autoria de mulheres – que, aliás, é péssimo incluir “feminino ou masculino” na questão da autoria – mas infelizmente ainda precisamos falar sobre isso.
Como você vê a participação da mulher enquanto autoras na literatura contemporânea?
Acho que não existe uma resposta para isso, mesmo que fosse feita no século XVIII e sobre autoras da época. As mulheres escrevem desde sempre, a pergunta seria mais adequada se fosse “como você vê o mercado editorial, a mídia e crítica especializada pararem de fingir que não existem mulheres escrevendo”? Felizmente, hoje temos uma maior visibilidade de mulheres escrevendo, inclusive estamos desencavando mulheres que escreviam em meios predominantemente masculinos, como a Geração Beat, o século XVII, XIX, na Rússia… no Oriente.
Hoje, temos mulheres premiadas no âmbito nacional e em grandes premiações como o Nobel, Man Booker Prize (aliás, que nome) e etc. Tem gente achando que isso é uma “moda”. Não, apenas os leitores estão abrindo seus horizontes, assim como as editoras estão deixando seus catálogos menos engessados na visão masculina de mundo. Mas claro, precisamos de mais apoio, mais visibilidade e não apenas das mulheres ajudando mulheres, mas dos caras também saindo de suas zonas de conforto.
Precisamos de mais apoio, mais visibilidade e não apenas das mulheres ajudando mulheres, mas dos caras também saindo de suas zonas de conforto.
Como a mulher foi e é representada enquanto personagem na literatura?
Essa é uma outra resposta que também depende muito de onde os autores estão inseridos e onde colocam seus personagens. Não acredito que apenas mulheres podem representar mulheres, gosto sempre de citar a peça Casa de Bonecas, do Henrik Ibsen, alguns romances do Thomas Hardy e Henry James para mostrar como homens também podem retratar mulheres fazendo uma crítica e fugindo do senso comum.
Claro que uma boa parte do cânone literário representou a mulher dentro dos padrões de época, por isso, gosto de citar os que fugiram da lógica do momento. Muito do romance feito no século XIX, envolvendo personagens mulheres, denunciava a forma que a sociedade machista as enxergava. Como não lembrar de Madame Bovary ou de Anna Karenina, que de tão transgressoras só cabia a elas a morte como destino? Sem contar as mulheres consideradas histéricas, loucas ou bruxas. No século XX e XXI também temos nossos pequenos padrões, como a mulher sempre sexy (muitas envolvendo um uma questão forte de raça) ou a descolada, que surge para salvar a crise existencial do protagonista (Daniel Galera e outros contemporâneos gostam desse padrãozinho), e sem contar um grande número de não representações, né? Há obras que as mulheres são apenas mães ou um sexo ligeiro.
Mas como disse antes, não gosto e nem quero generalizar. Acredito que tem muito dedo aí do mercado editorial que “orienta” o que vai ser lido ou não. Por isso a importância de projetos, movimentos, textos e afins que fujam da lógica de mercado. É muito bom sair da quentinha zona de conforto e tentar espiar com os olhos do outro.