Escritor, crítico literário e professor de teoria da história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Charbel faz uso difuso de sua formação na hora de escrever ficção. É isso o que revela nessa entrevista à Escotilha, em que fala sobre o seu livro Saia da Frente do Meu Sol, uma obra instigante que transita entre gêneros: há elementos de romance, ensaio e análise fotográfica, dentre outras influências formais.
Em conversa com o portal, Charbel discute sobre o seu processo e sobre como como a onda de obras de autoficção pode esconder uma diversidade literária dentro de um mesmo rótulo. Confira o papo a seguir.
Escotilha » O seu livro tem essa questão muito interessante de transitar entre gêneros, e é difícil categorizá-lo dentro de uma única “caixa”. Vi que falam de romance especulativo, e você fala de romance fotográfico. Esse formato fluido encontrou inspiração em obras que você leu? Quais?
Felipe Charbel » Tanto o meu livro anterior, Janelas Irreais, quanto esse, Saia da Frente do Meu Sol, não são obras em que se identifica claramente o gênero literário. Eles têm uma marca da mistura, que mesclam registros e que, por isso, acabam gerando uma certa confusão na hora da leitura.
Eu acho isso interessante, até porque, se eu for pensar, no tipo de literatura contemporânea que mais me interessa, as obras têm essa característica. Penso que é uma maneira de criar as expectativas de leitura, como, por exemplo, para um romance realista ou para um ensaio não narrativa, ou um livro com fotos apenas ilustrativas.
Se eu fosse pensar em obras que me inspiraram, citaria W. G. Sebald (sobretudo Os Anéis de Saturno). Por duas razões: a mescla de narrativa com ensaio e a recusa de Sebald tinha de chamar seus livros de romance. Ele preferia falar em “narrativa longa em prosa”, o que deixa bem aberto. Além disso, há também o uso das imagens não apenas de forma ilustrativa, mas mexendo e interferindo no texto.
Também citaria Mario Levrero, com O Romance Luminoso e O Discurso Vazio, Annie Ernaux, Karl Ove Knausgård, Emmanuel Carrère…. são autores que li bastante e com certeza me influenciaram.
Seu trabalho na obra dialoga em certa medida com a micro-história, ao buscar elaborar a narrativa da vida de um homem que, em vários aspectos, reflete o contexto histórico de uma época. De que maneira a sua formação como historiador interfere na sua literatura?
Eu nunca tinha pensado nesses termos. Por ser historiador e dar aula em um curso de graduação da História, sempre pensei em Saia da Frente do Meu Sol não como um livro de historiador. Justamente por ser um livro muito lacunar. Ele tem elementos documentais, como fotos e material de arquivo pessoal, mas que não tem uma pesquisa histórica para preencher os vazios da vida do tio Ricardo.
É um livro muito reflexivo, que é sim sobre uma pessoa, mas sobretudo sobre um jeito de encontrar a maneira de contar sua história. Ou seja, é uma obra também sobre o processo de escrita. Mas é claro que essas leituras da história ficam e estão presentes.
A menção à micro-história me parece pertinente, pois foi um momento que a História buscou se interessar novamente por histórias pessoais, que são pensadas sempre no contexto sócio-histórico. Isso existe no livro: o de pensar o personagem a partir da situação dele, de sua historicidade, que moldou a pessoa e o modo como a família se relacionava com ele.
“Saia da Frente do Meu Sol um livro muito reflexivo, que é sim sobre uma pessoa, mas sobretudo sobre um jeito de encontrar a maneira de contar sua história. É uma obra também sobre o processo de escrita”.
Felipe Charbel
Uma frase que se repete em Saia da Frente do Meu Sol é o excerto “falando dele é de mim que falo”, de Pierre Michon. Em que medida investigar o tio Ricardo o fez descobrir mais sobre o Felipe?
Esta frase me capturou desde a primeira leitura do livro, tanto que eu a anotei num caderninho e ela ficou na minha cabeça. Comecei a trabalhar em Saia da Frente do Meu Sol por volta de 2013, abandonei o projeto e voltei a ele só em 2020. Mas essa frase do Michon ficou na minha cabeça e sempre voltava associada a este desejo de escrever a história do tio Ricardo.
Então foi ela que me levou a encontrar uma maneira de fazer isso, em uma convergência da biografia com a autobiografia. Eu acredito que nenhuma biografia pode se apresentar sem apresentar também a pessoa que faz a investigação e elabora a narrativa. Minha ideia era trabalhar no livro essas duas dimensões, não necessariamente de uma forma equilibrada. Que ele fosse uma forma de contar a história do tio e a história dessa relação.
À medida em que fui me interessando na história dela, fui pensando também na minha, buscando responder algumas perguntas. Por que razão quando ele morou comigo eu conversava tão pouco com ele? Por que razão ele foi tão calado e ensimesmado na velhice? São questões que, com o passar do tempo, a gente começa a se perguntar.
Não fazemos essas perguntas quando somos adolescentes ou temos vinte e poucos anos – ou pelo menos eu não fazia. Quando a gente envelhece, essas perguntas começam a se colocar. Então escrever esse livro me ajudou a entender melhor a pessoa que eu fui, além de compreender melhor a minha indiferença e o meu próprio silêncio.
Há hoje toda uma onda de livros chamados de autoficção, que partem da vida de um autor mas com liberdades de criação que não seriam aceitas dentro do gênero da não ficção. Saia da Frente do Meu Sol, por outro lado, nasce de uma pessoa real, mas, de certa maneira, o que você faz é imaginar uma vida possível para este homem. Como você avalia essa quantidade de obras de autoficção hoje presentes no mercado editorial? E como seu livro dialoga com elas?
Existe sim uma onda de obras de autoficção. Mas creio que existe também um jeito de se referir a obras muito diferentes entre si a partir dessa categoria. O que me parece é, que hoje, o termo tem sido usado de modo muito elástico, de maneira que cabe tudo nele. Se cabe tudo, então ele deixa de designar algo particular de um conjunto de obras.
Eu entendo que, nos livros autoficcionais, existe sempre um espaço muito grande para a fabulação com um nome próprio, da vida de quem escreve. Penso, por exemplo, no Coetzee, que, em Verão, usa o nome dele, mas cria um personagem diferente, com uma trajetória de vida parcialmente parecida com a dela.
Em relação ao Saia da Frente do Meu Sol, vejo que ele se insere aqui. Tem um elemento imaginativo muito forte, de invenção e fabulação a partir das lacunas da vida de um homem que deixou pouquíssimos rastros. Então tem ficção aí, mas existe também um impulso de narrar uma história verdadeira.
Já os livros da Annie Ernaux, do Karl Ove Knausgård e Emmanuel Carrère apontam a uma outra direção: um narrador que busca se expor de uma maneira que entende ser honesta em relação à sua própria vida. Se eles conseguem isso ou não, é impossível saber, pois não há uma régua que meça isso. Mas vejo como coisas diferentes.
É claro que a ideia de autoficção tem tudo a ver com livros destes autores, que se pautam no discurso da sinceridade e da honestidade, o que é diferente de livros como Verão ou Divórcio, do Ricardo Lísias. Estes últimos estão jogando um jogo que muitas vezes é irônico, e brincam com essa impossibilidade de saber se alguém está falando a verdade.
Mas, no sentido amplo, tudo isso é autoficção. Então acho que o gênero engloba obras tão diferentes que merecia um novo nome. Que nome é esse eu não faço ideia. Não gosto muito do termo “romance de não ficção”, porque há sempre uma medida de ficção, nem que seja para fabular a si mesmo ou imaginar uma vida possível.
Acho muito bom e saudável a quantidade de obras no mercado editorial que falam de narrativas pessoais. Se a gente parar para pensar, esse já é um movimento presente há décadas em outros mercados, mas que se tornou mais nítido no Brasil nos últimos anos.
Grande parte das narrativas brasileiras recentes chamou a atenção justamente por mesclar a história pessoal com ensaio, uso de documentos, etc. Menciono obras como A Estranha Ideia de Família, de Julia da Rosa Simões, Uma Exposição, da Ieda Magri, O Que é Meu, de José Henrique Bortoluci, Triste Não É Ao Certo a Palavra, do Gabriel Abreu, John, da Julia de Souza, Bicho Geográfico, de Bernardo Brayner, o último da Natalia Timerman… são todos livros com proximidade e que certamente dividiriam a prateleira com o meu.
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