Todos damos prosseguimento de uma forma ou de outra a uma tradição. Na leitura, nós mantemos nossos olhares centrados em certos tipos de literatura e não outros. Na literatura de certos lugares e de certas pessoas, sabe? Mas as coisas têm mudado: pelo mundo agora criamos pontes onde antes só havia distância. O Oriente, por exemplo, nunca esteve tão perto de nós. E nós tão perto deles, como confirmaria Hiromi Ito, poeta em foco neste texto.
Nos últimos anos, ouvimos falar mais de romancistas como Haruki Murakami e, por conta do Nobel de 2017, Kazuo Ishiguro (embora possamos vê-lo mais como um homem britânico que nasceu no Japão, né?). No Brasil, Oscar Nakasato chamou nossa atenção para os nipo-brasileiros quando ganhou o prêmio Jabuti de 2012. No entanto, ainda sabemos pouco de outros artistas japoneses, quanto mais de poetas…
Hiromi Ito é uma das mais famosas poetas contemporâneas do Japão. Em sua obra, explora a sexualidade feminina, a maternidade e novas formas poéticas – flertando com a prosa e chegando ao ponto de confundir quem queira categorizar alguns de seus trabalhos. Muitas de suas leituras são como performances: as influências da espiritualidade xamã, de povos ameríndios e do Budismo se fazem presentes pela linguagem coloquial direta e dramática de sua obra.
Hiromi Ito é uma das mais famosas poetas contemporâneas do Japão. Em sua obra, explora a sexualidade feminina, a maternidade e novas formas poéticas.
Ito, como fazem Kazuo Ishiguro ou Oscar Nakasato, usa de sua experiência dupla, Oriental e Ocidental, para investigar o humano. Ela é japonesa e há muitos anos mora nos Estados Unidos, na Califórnia, e diferenças culturais frequentemente vêm a primeiro plano. Abaixo, trazemos um pequeno trecho do poema “Eu sou Chito”, em que, por meio de reminiscências, a “autora”, digamos, investiga porque saiu de seu país natal.
“[…]
Não é a invenção de um indivíduo nem do presente,
mas foi lentamente construída dos sentimentos de todos os Coiotes de todos os tempos e
Suas experiências todas enfatizavam para ela aquela velha ideia de ‘ficar na surdina’ –
ou seja, ficar quieta, discreta, e se esconder quando o perigo estiver à vista
Aquelas foram as coisas mais importantes que eu aprendi quando criança
A sabedoria de Chito
Como sobreviver
Vendo o livro, eu lembrei porque
Eu vim para esse lugar chamado América
As coisas mais importantes que aprendi quando criança
Estavam naquele livro que li de novo e de novo
[…]”
Em verso livre e com colagens de um livro infantil dos Estados Unidos que Hiromi Ito havia lido quando criança, o poema mostra um pouco das quebras que a autora faz com o cânone japonês de literatura. Tratam-se de provocações, que para nós já não soam tão chocantes, mas que para os conterrâneos da autora ainda detém um bom poder de abalo.
O poema contém uma versão dos coiotes, personagens recorrentes em sua obra, e assim nos ajuda a entender o simbolismo interno que a autora cria em seus poemas, em seu mundo literário. Vemos presente noções comuns no Budismo quando percebemos a importância do comportamento cíclico dos coiotes a que somos expostos. Não seríamos os humanos parte desses ciclos também? No poema vemos a semente do que Chito é na história do que os outros coiotes foram e também uma semente de quem a voz lírica cresceu para ser na menina que no passado lia livros infantis.
Outro aspecto saliente no poema é o campo entre línguas que a autora explora. Aprendemos em outra passagem do poema que o nome da coiote que protagoniza o livro infantil é “Chito” porque se trata de uma adaptação do nome “Tito” da coiote na língua original. Chito torna-se o nome de uma personagem de entre-lugar, adaptação de um nome em inglês para a fonologia do japonês. O mais curioso ainda: Chito não é um nome japonês típico, nem mesmo um animal japonês típico.
Reparemos que Chito é um transplante entre culturas e que Hiromi Ito decide tornar-se o mesmo posteriormente, em 1997. No poema temos um eco da autora, uma Chito ao contrário saindo do Japão e se adaptando aos Estados Unidos. Em uma passagem próxima ao trecho trazido, a voz lírica analisa a obra no original em inglês e envergonha-se por não mais lembrar a forma em japonês que havia lido aquele livro em sua infância.
Não é possível não pensar na bênção que é a tradução. Afinal, de que forma ir mais longe culturalmente se nosso conhecimento linguístico levanta-se como barreira? A pequena tradução que trazemos aqui só é possível graças ao trabalho do professor universitário, tradutor e poeta Jeffrey Angles. Angles construiu uma ponte da cultura japonesa para a anglófona, sem abandonar a riqueza específica abrigada na obra de Ito. Um trabalho em boa dose solitário, mas essencial.
Viver entre-lugares é viver entre-identidades e é muito rico vislumbrar esses mundos que podemos conhecer se conseguirmos sair do lugar-comum. Cremos no poder de abrir novos horizontes. Se for pela poesia, tanto melhor.