Poucas escritoras tiveram tanta influência na literatura norte-americana no século XX quanto Joan Didion. Até mesmo quando estamos diante de uma de suas icônicas fotos (como a do fotógrafo Julian Wasser, em que a escritora está em primeiro plano, cigarro na mão, enquanto em segundo plano seu marido e filha parecem quase entrar no enquadramento por acidente), notamos o poder que emanava de uma artista da ficção.
Enquanto o universo literário parece carregado da fantasia de suas próprias imagens, como personagens deles próprios (como bem apontou a pesquisadora Jess Cotton, em artigo no The Conversation), Didion destilava glamour naturalmente.
Em sua carreira, a autora publicou cinco romances, seis roteiros e vários outros trabalhos de não-ficção. Seu diário de viagens, Sul e Oeste, editado no Brasil somente no meio deste ano, pela HarperCollins, foi o último trabalho da ensaísta publicado em vida. Nos Estados Unidos, uma coleção de ensaios foi publicada em janeiro, o ainda inédito no Brasil Let Me Tell You What I Mean.
No início deste mês, parte de seus objetos pessoais que estavam no apartamento que mantinha no Upper East Side foram levados a leilão pela Stair Galleries & Restoration Auction House, com recursos destinados à caridade.
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Entre o material vendido, uma extensa coleção de livros de poesia.
Entre o material vendido, uma extensa coleção de livros de poesia, um conjunto de óculos de sol Céline, panelas e frigideiras Le Creuset e muito material de arte. O valor arrecado ficou próximo a US$ 2 milhões.
Didion, cujo minimalismo e firmeza foram várias vezes apontados como “individualismo e frieza”, amava a ideia de estar cercada de pessoas, de oferecer jantares, de cruzar a elegância com o kitsch. E escancarava suas próprias contradições, ainda que através de ironias, como fez em O Álbum Branco.
Entre a divulgação do leilão de seu espólio e a abertura das ofertas, foi incrível acompanhar o poder especulativo em cima do que, em tese, nem mesmo conceituaríamos como arte.
No conjunto arrematado, obras do arquiteto Richard Serra, pinturas de Richard Diebenkorn e fotografias de Patti Smith. Também uma série de retratos desenhados e fotografados por sua incrível coleção de amigos e admiradores de renome, como Brigitte Lacombe, Annie Leibovitz e Les Johnson.
Didion, ainda bem, nunca foi uma autora com vergonha de ganhar dinheiro. E sempre soube o poder de sua presença, como quando se envolveu no financiamento coletivo para a realização do documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold, dirigido por Griffin Dunne, sobrinho da escritora e jornalista.
Ao mesmo tempo, seu perfil discreto rendeu a ela a capacidade de trafegar tranquilamente entre artistas, políticos e outras pessoas de poder sem chamar a atenção. Como a própria Didion dizia, sua “única vantagem como repórter” era ser “tão fisicamente pequena, tão temperamentalmente discreta, que as pessoas tendem a esquecer que minha presença vai contra seus melhores interesses”.
Conta Jess Cotton em artigo no The Conversation, para dimensionar Didion por ela mesma, que a jornalista, em um artigo na Esquire, na década de 1970, se descrevia como “uma escritora que sonha em abrir um shopping center e administrá-lo”.
Para nossa sorte, Didion abriu mão desse sonho em favor de ser uma das mais influentes escritoras norte-americanas do século XX. Se não teremos acesso aos seus bens, podemos ficar agradecidos por seu “sonho abandonado”.
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