Você pode não saber disso, mas a força criativa do dramaturgo, romancista, ensaísta e crítico literário Karel Tchapék tem influência direta em nossas vidas, especialmente em nossa concepção contemporânea de tecnologia, consciência e inteligência artificial. O autor tcheco é, afinal, o responsável por cunhar a palavra robô, derivada do termo robota, comum em línguas eslavas, que denota “trabalhos forçados”. O neologismo apresentado por Tchápek em sua peça A fábrica de robôs, de 1921, tornou-se parte fundamental de toda a ficção científica, e hoje concretiza-se como realidade na crescente indústria da robótica.
Mas a influência de Tchápek na ficção especulativa não se limita a essa crucial adição ao léxico mundial. Com A Guerra das Salamandras, clássico publicado em 1936, o autor apresenta uma narrativa que encontra terrível comédia nos absurdos políticos do período entreguerras, ao mesmo tempo em que analisa, como o fazem as grandes obras da ficção científica, questões filosóficas e existenciais de importância atemporal. Afinal, o que separa o ser humano de outros animais? No que consiste a inteligência e quais são as consequências da autoconsciência? Quais são os limites do desenvolvimento tecnológico? Essas e outras perguntas são alvo da análise ácida e sarcasticamente humorística de Tchápek em A Guerra das Salamandras.
O conhecimento histórico das nuances geopolíticas do período entreguerras é crucial para a compreensão dos aspectos satíricos do livro, que não poupa nenhuma das grandes nações ocidentais.
Dividido em três partes, o romance narra a implacável ascensão da espécie subaquática fictícia classificada pelos cientistas como Andrias scheuchzeri, animal anfíbio semelhante às salamandras e tritões, cuja anatomia e fisiologia são minuciosamente descritas ao longo do livro, concedendo às estranhas criaturas um perturbador ar de realismo similar às descrições científicas encontradas em livros de zoologia.
A primeira parte do romance, de tom mais leve e aventuroso, lida com o primeiro contato entre homens e salamandras. Dotadas de rudimentar inteligência, as criaturas são acidentalmente descobertas por exploradores ocidentais nas águas da Indonésia, e logo passam a ser exploradas como mão-de-obra análoga a uma classe operária submarina, trabalhando incessantemente em troca de alimento e ferramentas básicas. A segunda parte, por sua vez, adquire tons mais sombrios, e retrata a evolução social e intelectual das salamandras, impulsionada por sua explosiva capacidade de reprodução e labor incansável. Por fim, a terceira e última parte, com o mesmo título do livro, explora o conflito brutal entre a humanidade e a classe que havia explorado até então. Superior em números e capacidade bélica, as salamandras passam a apresentar uma ameaça real à continuidade da espécie humana, simbolizando as consequências efetivas da revolução e da luta de classes.
O conhecimento histórico das nuances geopolíticas do período entreguerras é crucial para a compreensão dos aspectos satíricos do livro, que não poupa nenhuma das grandes nações ocidentais, trazendo paródias de seus governantes, de sua política externa e do nacionalismo exacerbado que caracterizou muitos regimes do período. Contudo, a leitura do romance é proveitosa mesmo sem essa bagagem, pois Tchápek escreve com grande habilidade, mesclando múltiplos pontos de vista e técnicas narrativas diversas para contar uma grande história de ficção científica. Neste sentido, A Guerra das Salamandras é um verdadeiro clássico, uma obra que deve resistir resistir à passagem de mais oito décadas – assim como resistiu até aqui.
A GUERRA DAS SALAMANDRAS | Karel Tchápek
Editora: Record;
Tradução: Luís Carlos Cabral;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Agosto, 2011.