E se um homem resolvesse se alfabetizar aos 71 anos só para ler uma antiga carta de amor? A premissa de A palavra que resta, romance de estreia do autor cearense Stênio Gardel, parte de uma expectativa amorosa e de um mistério: o que haverá nesta carta?
O livro propõe acompanhar a história de Raimundo Gaudêncio de Freitas, um sujeito que atravessa a vida à margem da sociedade em diversos aspectos: ele cresce no interior do sertão nordestino, cercado de todo tipo de preconceito (inclusive os dele próprio), recebe pouca instrução durante a vida e passa boa parte dela sem saber como lidar direito com o seu desejo por homens.
Ou seja, nada corre a favor deste protagonista. Em sua juventude, Raimundo cai de amores por Cícero, mas quando seus pais (os dele e os do amante) descobrem do desejo que nutrem um pelo outro, ambos são separados à força. Cícero some, mas deixa uma carta o seu amor; já Raimundo é expulso de casa pela mãe, que o vê como uma anomalia, como uma chaga que caiu sobre sua família. Ela chega, inclusive, a culpá-lo pela morte de dois filhos gêmeos, por tê-los pegado no colo uma vez. Como um Édipo renegado, ele sai de casa à busca de um destino incerto.
Em A palavra que resta, nada é preto ou branco. Não temos vilões nem heróis.
O romance de Stênio Gardel é uma obra sensível, mas que comove o leitor porque sua força se situa em uma dualidade: é ao mesmo tempo um livro delicado, que toca na vulnerabilidade dos sujeitos que sofrem exclusão em suas famílias, mas também potente, pois nos mostra o quanto a violência pode levar alguém a ir buscar lares mais acolhedores, por mais precários que eles sejam.
No caso de Raimundo, os braços que encontra são os de Suzzanny, uma travesti que conhece justamente no momento que a agride – ele bate nela numa tentativa de afogar e esquecer a própria homossexualidade. Sua amizade se constrói no hospital.
Em A palavra que resta, nada é preto ou branco. Não temos vilões nem heróis. Os próprios pais de Raimundo, como vemos sutilmente, “combatem” a sua homossexualidade menos por motivo de ódio e mais por um desejo quase ignorante de proteger o filho.
O pai, inclusive, tem uma história pregressa em sua família de origem, envolvendo o irmão, que ajuda a explicar a ojeriza que sente pela orientação de Raimundo. Mas nada disso os impede, pai e filho, de separar-se – amargamente, parece inviável pensar em alguma reconciliação possível nesse microcosmos em que o atraso prevalece.
A palavra que resta chama a atenção ainda pela sua estrutura narrativa, que se fragmenta entre passado e presente. A cada capítulo, captamos a fase vivenciada pelo jovem e pelo velho Raimundo, sobretudo, por causa das personagens que o cercam.
As companhias vão se alterando durante a sua vida: a convivência com Cícero, a triste despedida da irmã Marcinha, o embate com o pai Damião e a mãe Caetana e, por fim, a parceria com Suzzanny. Num vai e volta bem amarrado, a narrativa vai se conduzindo de forma fluida e mantendo profundo respeito às marcas de oralidade daqueles indivíduos
Conhecer a história de Raimundo me trouxe à memória a vida de Macabéa, de A hora da estrela, de Clarice Lispector: ambos são personagens distantes das oportunidades de um mundo globalizado. A eles falta tudo – educação, afeto, horizontes. À diferença de Clarice, Stênio Gardel parece construir a história de seu protagonista com mais generosidade, e apresenta a ele um futuro possível, apesar de tantas faltas.
E “a palavra que resta”, ou seja, a carta de Cícero? Como um inteligente artifício literário, é ela que nos conduz para avançar na obra, nos prendendo a um mistério – que, obviamente, esta resenha não irá revelar. Mas vale apenas mencionar que o final não decepciona.
A PALAVRA QUE RESTA | Stênio Gardel
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Abril, 2021.