“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
(Fernando Pessoa, sob o pseudônimo Álvaro de Campos)
Ao longo de 2013, desenvolvi um projeto de incentivo à leitura chamado Pretérito (im)perfeito, com o objetivo de debater a compreensão de o que quer que seja velho – coisa ou indivíduo – na sociedade, as implicações do envelhecer e a maneira como as linhas anacrônicas estão transpostas e são abordadas nas páginas da literatura. Nas rodas de leitura para jovens e adultos, utilizei-me, por exemplo, de excertos de Dom Casmurro e Homem Lento, dos contos “O curioso caso de Benjamin Button” e “Feliz Aniversário”, além de crônicas como “A arte de ser velho” ou “Dona Maria tem olhos brilhantes”, dentre outras obras. Os primeiros dois capítulos de a máquina de fazer espanhóis, do angolano radicado em Portugal Valter Hugo Mãe, também compunham a curadoria.
Conheci esse texto por meio de uma mediação conduzida pelo colega Marcelo Frote. Quando da leitura, chorei. Chorei diante da beleza das linhas, da força das metáforas, da angústia daquele senhor silva à iminência da perda do amor de sua vida. Chorei diante da intensidade de Valter Hugo Mãe. Decidi que era dever meu compartilhá-lo com outras pessoas.
Entre os aspectos abordados em a máquina de fazer espanhóis, estão a representação social da velhice, a linha tênue entre memória e subjetividade, o testemunho da História e as relações afetivas em uma casa de velhos, lugar de esquecimento paulatino.
No entanto, embora os primeiros instantes de a máquina de fazer espanhóis tenham me atravessado violentamente, com o passar do tempo desenvolvi um certo ranço em relação a Hugo Mãe e alguma resistência em conhecer sua obra. Isso porque o autor acabou tornando-se objeto de veneração de muita gente. Passei, simplesmente, a ficar desconfiada, assim como eu sempre fico quando me deparo com algo que, de uma hora pra outra, faz-se frequente na boca dos outros, valter-hugo-mãe-pra-cá-valter-hugo-mãe-pra-lá. Cheguei a fazer pouquíssimo caso da visita do autor a Curitiba e, inclusive, da reunião da qual participei com a ilustre presença do próprio (!).
Resolvi, então, neste Desafio dos 50 livros, dar uma chance a ele. E não me arrependo. a máquina de fazer espanhóis (Cosac Naify, 2011) talvez tenha sido a melhor leitura no ano, escrita por alguém que, veja só, inspira-se na poesia de nosso Leminski para compor sua meta-metafórica-metafísica (assista aqui). O livro narra a história de um silva silvestre, antónio jorge, 84, ex-barbeiro que, depois de perder o amor, passa a viver num dito “lar da feliz idade”, arremedo de felicidade. Ao resignado e desgostoso senhor silva resta-lhe acostumar-se com o começo do fim e descobrir novas formas de pensar o outro.
O registro histórico, quando não científico, jornalístico ou mesmo literário, é constituído pela narrativa pretérita a partir do olhar subjetivo para o passado. O senhor antónio diria que “falta saber se há o que se descubra num universo de velhos amedrontados e confusos das ideias”. Certamente há. O protagonista de a máquina viveu sob o peso da ditadura em Portugal e optou por prostrar-se inerte diante do fascismo do estadista Salazar, preferindo a abstenção à revolução. Deparando-se sozinho e já sem objetivos, faz uma dura revisão de seu passado, revisita a História. É sempre possível estabelecer aspectos em comum dentre a vida certamente distinta nos países colonizados por Portugal e no próprio Portugal. Mesmo diferentes em suas culturas e em modos de vida, passado e língua unem essas nações. A decisão de deixar a pátria em busca de outro lugar também. A tal da máquina. A diáspora.
Ao longo da leitura, pensei em “A Casa de Velhos”, uma das minhas reportagens preferidas da jornalista Eliane Brum, que também retrata os velhos e esquecidos do mundo. Pensei em Los Hermanos (“ora, se não sou eu, quem mais vai decidir o que é bom pra mim?”), em Alexandre França, em Simonami. E na dor de uma idade que, ao contrário do que se pinta por aí, não é a melhor.
Entre os aspectos abordados estão a representação social da velhice, a linha tênue entre memória e subjetividade, o testemunho da História e as relações afetivas em uma casa de velhos, lugar de esquecimento paulatino. Trata, pois, de perdas e “Rremembranças”, como diria Valêncio Xavier. E, dolorosamente, como um tapa na cara, trata sobre as parcas perspectivas para o futuro que pode ser amanhã ou que certamente não tardará: a morte. Sem eufemismos.
Na obra, um carinho especial pelo personagem senhor esteves sem metafísica, aquele da Tabacaria de Pessoa, “um verso vivo da mais valiosa poesia portuguesa”, “a nossa poesia problematizada”. O capítulo treze merece atenção especial.
Já O filho de mil homens (Cosac Naify, 2011) está aquém da intensidade de a máquina de fazer espanhóis, mas, de forma alguma, chega a ser um livro fraco. Pelo contrário, trata-se de uma história densa de um homem, o Crisóstomo, que se vê pela metade, caindo dentro de si, e que, com o passar do tempo, encontra seus inteiros, dobros, razões. E de um filho de mil homens, o Camilo, perdido em suas aflições.
Cabe aqui destacar o belíssimo projeto gráfico que a Cosac Naify desenvolveu em ambos os títulos. No caso de a máquina, a edição tem capa desenhada pelo escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli. É para ter na estante e ler sempre que a vida estiver carente de metafísica, a alma quieta por demais.
“Do cão fez-se o dia”. da dor, antónio jorge da silva. da metafísica, o esteves. Do dobro, o Crisóstomo. Da angústia, faz-se a avassaladora literatura de Valter Hugo Mãe.
O contra dessa capa representa uma bravata: leia mais.