Quando Joe Sacco publicou Palestina, em 1996, a técnica dos quadrinhos no jornalismo era uma inovação. Até então, o uso dos desenhos para reproduzir grandes reportagens não havia sido explorado. Desde então, quase duas décadas depois, a técnica se popularizou, assim como cresceu a curiosidade sobre os países do Oriente Médio, considerados de grande mistério para o Ocidente.
Foi utilizando os quadrinhos de maneira híbrida (há a inserção de – poucas – fotos), que o italiano Ugo Bertotti concebeu O Mundo de Aisha – A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen, publicado neste ano no Brasil, pela editora Nemo. O livro retrata a vida de iemenitas, conflitos familiares e sociais diante de uma realidade em que é necessário o uso do niqab, um véu que cobre o rosto e só revela os olhos das mulheres. Aisha, Sabiha, Hamedda, Houssen e tantas outras que sofrem com imposições ou desafiam a realidade em que vivem.
Bertotti desenhou seus quadrinhos com base nas fotos de Agnes Montanari, fotógrafa e documentarista, que já viveu na Índia, em Bangladesh, Geórgia, Jordânia e Iêmen, de onde também são as protagonistas. Entre as histórias, conflitos com a família, principalmente irmãos ou maridos, que passam a exigir o respeito das mulheres pelo uso do niqab, proibindo a “exposição” de seus corpos nas ruas – mesmo que essa exposição seja apenas a face descoberta. Olhar o mundo por uma fresta é o que resta a Sabiha, por exemplo, que chegou a levar um tiro do esposo por apenas retirar o véu de seu rosto.
Olhar o mundo por uma fresta é o que resta a Sabiha, por exemplo, que chegou a levar um tiro do esposo por apenas retirar o véu de seu rosto.
Mas confrontar o limite, representado por tantos panos, foi o que fez Hammeda. A iemenita se transformou em uma grande empresária do país. Começou cozinhando para soldados, se tornou dona de restaurante, de hotel e com um grande plano de investimento para a vida. É mãe de cinco filhos e cinco filhas, que trabalham com ela nos negócios da família. Avó de 50 netos. Mas conta que, mesmo ao ir comprar alimentos, logo no início de sua carreira, ouvia xingamentos e era hostilizada nas ruas.
A situação de Hammeda mudou apenas quando o presidente do Iêmen foi visitá-la, para conhecer seus quitutes e seu restaurante. Após degustar o cardápio, ele garantiu a Hammeda que ela não mais sofreria agressões verbais. E assim foi. As histórias presenciadas por Agnes e desenhadas por Bertotti têm finais felizes e tristes. Mostram como, surpreendentemente, no mesmo ano de 2015, mulheres vivem em condições completamente diferentes nos diversos países do Planeta.
São narrativas que atraem pelo contexto tão oposto ao que é disseminado e vivido, pela maioria, em nosso país, por exemplo. Uma cultura diferente, com nuances que podem ser facilmente condenadas como extremistas, mas que carregam histórias milenares de povos orientais.
Os traços não oferecem ricos detalhes como os de Sacco, por exemplo. As fotos poderiam ser mais presentes, enriquecendo aproximação da tríplice: desenho, leitor e personagens. Ainda assim, vale o relato curioso e pouco explorado da vida das iemenitas.
Talvez tenha sido o mistério em torno dos atentados de 11 de Setembro que transformou o Oriente Médio em um tema tão recorrente na literatura, na fotografia e no cinema. Quase 15 anos após a tragédia, a cultura distante, como tudo o que nos é estranho, intriga. E o que intriga, em geral, oferece boa leitura.
O MUNDO DE AISHA – A REVOLUÇÃO SILENCIOSA DAS MULHERES NO IÊMEN | Ugo Bertotti
Editora: Nemo;
Tradução: Fernando Scheibe;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2015.
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