Não é incomum que vida real e literatura se cruzem. Aliás, elas fazem isso constantemente. E não é diferente na obra do holandês Arnon Grunberg. Depois do perturbador Tirza (Rádio Londres, 2015 – leia aqui nossa crítica), ele retorna com o aterrador O Homem Sem Doença (233 págs.), segunda obra lançada no Brasil, novamente pela Rádio Londres, com tradução direta do holandês de Mariângela Guimarães.
Frank Lloyd Wright foi um dos pioneiros na construção de arranha-céus da Escola de Chicago, uma das primeiras manifestações da arquitetura moderna, surgida após o incêndio que destruiu boa parte da cidade de Chicago. A cidade precisou ser reconstruída e no processo os arquitetos privilegiaram a construção de conjuntos de edifícios de grande altura, que apresentassem novas soluções tipológicas, estruturais, construtivas e morfológicas, focando no uso de estruturas metálicas que simbolizassem o desenvolvimento econômico da cidade.
Pois Wright, que não aparece no livro, diga-se, chegou a apresentar um projeto para a construção da primeira ópera de Bagdá, capital do Iraque. Apesar de ter mergulhado em uma profunda pesquisa para o desenvolvimento do projeto, ele nunca chegou a concluir. E é a partir deste ponto que O Homem Sem Doença dá o pontapé inicial.
Grunberg mergulha em descrições perturbadoras de algumas cenas da tortura sofrida por Samarendra, atingindo o ponto alto da literatura desconfortável, como se fôssemos despertados com um murro no crânio, tal qual dizia Kafka.
No livro acompanhamos Samarendra Ambani, um jovem arquiteto suíço de origem indiana extremamente idealista que participa de um concurso que escolherá um profissional para projetar o primeiro teatro de ópera de Bagdá. Finalista, Sam, como é conhecido, é convidado a ir até o Iraque para encontrar Hamid Shakir Mahmoud, um dos fundadores do World Wide Design Consortium, responsável pelo concurso. A viagem inicia de forma normal e tranquila, até algo ocorrer em Bagdá e, sem mais nem menos, Sam ser preso acusado de ser espião. Em um cômodo escuro e de paredes geladas, Samarendra Ambani é cruelmente torturado.
Sam consegue ser solto e retornar a Zurique, mas encontra muitas dificuldades em se adaptar à realidade. Passado algum tempo, seu escritório é selecionado para desenvolver uma biblioteca em Dubai, então ele retorna ao Oriente Médio com o objetivo de acompanhar o andamento do projeto. E se o ditado diz que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, pois bem, aqui é justamente o que acontece.
Arnon Grunberg não constrói apenas um romance kafkiano, ele vai além. As atitudes e falas de Sam para com seus acusadores (e torturadores) são ineficazes. Subjugado, ele é incapaz de se defender, até porque a partir de um momento o personagem se entrega, como se fosse merecedor do que está acontecendo com ele. E apesar de alguns altos e baixos na narrativa – em alguns momentos a obra desvia, dando ares de roteiro de filme de ação –, Grunberg mergulha em descrições perturbadoras de algumas cenas da tortura sofrida por Samarendra, atingindo o ponto alto da literatura desconfortável, como se fôssemos despertados com um murro no crânio, tal qual dizia Kafka.
Para que o leitor entenda, vale a citação: “Eles tiram seus pênis de suas calças. Sam quer proteger os olhos, boca, nariz e orelhas, mas, como suas mãos estão atadas às costas, isso é impossível. Começam a urinar nele, alvejando principalmente seu rosto. Como há homens que miram a mosca no mictório, eles miram seu rosto. Ele é a mosca.” Ou mais adiante: “A sensação é de que ele próprio se tornou a urina, um amontoado endurecido de urina, com uma ferida latejante inflamada no meio da cara.”
Através de Samarendra, Grunberg vai também contra o idealismo e o que chama de “hipocrisia do Ocidente”. Sam ignora suas origens. Sua descendência é para ele um mero detalhe, que seria esquecida não fosse o olhar dos outros – e o nome escolhido por seu pai. E a recordação disto o incomoda, a ponto de repetir inúmeras vezes na obra que é suíço. Da mesma forma, nosso protagonista é um profisisonal idealista, a quem a forma sobrepõe a função. Isso não aparece apenas em seus comentários sobre a arquitetura, mas nas opiniões sobre sua namorada, sobre a formação de família.
Diferente de autores que optam pela sutileza, pela insinuação, Arnon Grunberg “segura” nossa cabeça para que vejamos bem toda a desgraça, o desacerto, tornando-nos cúmplices da tortura, do descaso e dos traumas do protagonista. O Homem Sem Doença confirma que o autor holandês não é completamente kafkiano, mas é perfeitamente grunberguiano: perturbador, insolente, cruel e desconfortável, como a boa literatura deve ser.
O HOMEM SEM DOENÇA | Arnon Grunberg
Editora: Rádio Londres;
Tradução: Mariângela Guimarães;
Tamanho: 233 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2016.