Antes de mais nada, peço ao caro leitor que vá à Wikipedia e leia sobre um sujeito chamado Samuel Morse.
Sério, vai lá dar uma lida, eu espero aqui, mexendo no celular.
Leu? Ok, então, vamos em frente.
Uma enciclopédia é muito útil em termos de armazenagem e consulta de informações, mas por outro lado não é exatamente um lugar que prima pela riqueza de detalhes ou mesmo por um fiapinho que seja de emoção, né? A mulher do cara morre e ele volta pra casa pensando em desenvolver uma nova forma de comunicação. Fim.
O podcaster norte-americano Nate DiMeo percebeu que a História com agá maiúsculo é composta por inúmeras histórias com agá minúsculo e criou um programa só para contá-las. Uma delas, a que abre o livro, é justamente a de Samuel Morse. O resultado, diferentemente da enciclopédia em que se guardam as informações como se estivessem no fundo da loja num estoque meio mofado, é uma história sensível, de cortar o coração, pois nos apresenta um homem que tentou seguir o seu sonho, mas perdeu a pessoa que mais amava e só ficou sabendo disso dias depois, quando ela já havia sido enterrada.
O Palácio da Memória foi publicado pela editora Todavia, com tradução do Caetano W. Galindo. O interessante é que não existe uma versão americana da obra. Galindo ouviu o podcast de Nate DiMeo e aí surgiu a ideia de transformar o programa em áudio num registro escrito, transpondo para as páginas toda a cadência, oralidade e emoção do trabalho original. O autor topou e o resulto está aí, uma das publicações mais interessantes deste ano.
Ex-repórter de rádio, DiMeo nos apresenta uma nova perspectiva a respeito da história dos EUA e do mundo, compondo pequenos recortes em forma de crônica que trazem à luz dezenas de existências extraordinárias.
Galindo ouviu o podcast de Nate DiMeo e aí surgiu a ideia de transformar o programa em áudio num registro escrito.
Além de Morse, temos a história do leão da MGM, da mulher que teve a absurda ousadia de usar calças em 1830, do pobre sujeito que teve que passar a noite cuidando da bomba atômica, do primeiro elefante a pisar na América, do menino que trabalhava em uma mina de carvão em meio a uma tragédia, do primeiro bar gay dos EUA, do maratonista que ganhou uma prova 1904 mesmo pegando um carona de carro, etc.
São 50 histórias, algumas delas engraçadas, mas muitas bem melancólicas. Diversas delas falam sobre momentos importantes na luta contra o racismo e pelo direito das mulheres, são narrativas emocionantes a respeito de pessoas que foram muito importantes, mas que eventualmente não receberam o devido valor nos registros da memória nacional.
Além de um grande pesquisador, Nate é um exímio contador de histórias. A sua técnica envolvente transforma aquela frieza do tipo Wikipédia em algo caloroso e absolutamente comovente, ele jamais se perde no acúmulo inócuo de informações ao mesmo tempo em que não abre margem para a superficialidade ou para inconsistências. Trata-se de um direcionamento muito preciso do olhar, bem como de uma cuidadosa escolha de palavras, como se houvesse uma espécie de métrica, tal qual na poesia, para se alcançar uma sonoridade muito específica, algo que captura o leitor já nas primeiras linhas e, lá pro final, deixa-o numa esquina qualquer, com lágrimas nos olhos. Nesse sentido, temos que tirar o chapéu ou o boné para o trabalho impressionante do tradutor.
Minha história favorita, “Sr. e Sra. Craft”, fala sobre um casal de escravos que decidiu fugir de seus senhores. É incrível como em míseras 4 páginas DiMeo nos dá um panorama perturbador do sul dos EUA pré-Guerra Civil. A jornada dos dois tem um daqueles finais que desafiam a capacidade do leitor em conseguir segurar o choro.
Mais do que nos apresentar novas perspectivas a respeito do passado, dando a devida importância para figuras fundamentais, DiMeo faz um trabalho importante de resgate da tradição e da paixão pelas narrativas orais, berço da literatura.
Ter a informação de que Samuel Morse se tornou um importante inventor é uma coisa. Envolver-se emocionalmente com as condições em que isso aconteceu é outra completamente diferente. Há toda uma riqueza nas histórias que passariam despercebidas não fossem o olhar atento e sensível de pessoas como Nate DiMeo. Só temos a agradecer a oportunidade de enxergar o mundo através desses olhos.
O PALÁCIO DA MEMÓRIA | Nate DiMeo
Editora: Todavia;
Tradução: Caetano W. Galindo;
Tamanho: 256 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.