O ato de revisitar o passado não recria verdadeiramente nada e, muitas vezes, trata-se apenas de um vagar pelas ferragens retorcidas de um acidente, “a delicada costura da distância que, ponto a ponto, vai retirando as pontes do retorno”. É um passeio dolorido, mas Heliseu, o docente do título, resolve caminhar lentamente por ali, como quem procura um objeto pequeno, ou quem sabe o sentido da vida, perdido há muito tempo.
O Professor, novo livro do escritor catarinense (no fundo, no fundo ele é curitibano, vai) Cristovão Tezza, autor do festejado O Filho Eterno, nos apresenta um professor que está se preparando para receber uma homenagem na universidade pelos anos de dedicação à vida acadêmica. Nos poucos minutos que antecedem esse evento, ele prepara mentalmente o seu discurso e passa a limpo toda a sua história: a desastrosa relação com a esposa, o romance com uma de suas doutorandas e a conturbada relação com o filho homossexual.
O panorama da situação econômica e política do Brasil, começando pelo golpe militar e seguindo até o mandato de Dilma Rousseff, serve tanto para dar contornos à personalidade pragmática da esposa Mônica, que pontua tudo com fatos históricos, quanto como um plano de fundo que nos posiciona na linha temporal que vai e vem quase que aleatoriamente na cabeça do protagonista (até Feliciano e a sua cura gay são mencionados indiretamente).
Essa relação com o tempo se estende também para a linguagem, o que parece bastante apropriado já que Heliseu atua na área de filologia e é apaixonado pela história das palavras. Isso influencia, é claro, no próprio modo/tempo de leitura do livro (seguindo uma linha meio Proust), já que exige uma atenção mais demorada à sonoridade e à própria representação gráfica da linguagem, o que é um grande prazer (já basta a leitura dinâmica e desatenta que fazemos nas redes sociais).
A tese de sua amante é sobre o “não dito” na língua portuguesa e, de forma irônica, o livro se constrói por meio da observação atenta e detalhada de pequenos instantes (bastante comum numa mente ferida que tenta chafurdar sentimentos de culpa), mas ao mesmo tempo não revela tudo, como num romance policial, que o personagem ironiza o tempo todo, fazendo com que as peças se encaixem, mas não formem uma imagem completa, afinal, como diz a amante “Todos os significados reais estão fora das palavras”.
O livro se constrói por meio da observação atenta e detalhada de pequenos instantes.
Este é um dos grandes méritos de Tezza, que demonstra um domínio absolutamente maduro da narrativa, comprovando mais uma vez que é um dos grandes nomes da nossa literatura. Ao não se preocupar em fazer concessões para facilitar a vida do leitor, fazendo citações e referência eruditas ou misturando, por exemplo, além das diversas linhas temporais, a primeira e a terceira pessoas às vezes num mesmo parágrafo, o escritor não só eleva sua própria “voz” como autor (aquilo que talvez todo escritor tente encontrar ao longo de sua carreira), como a própria literatura brasileira, afinal não é sempre que nos deparamos com petardos como esses:
“Eu não conseguia vê-lo como um filho; apenas como alguém que desembarcou na minha vida e que por algum mistério, em algum momento, por alguma razão, por qualquer coisa que eu nunca soube o que é nem como funciona (o tempo passa muito rápido, quando você vê, as coisas já são definitivas, só você que se arrasta incompleto atrás delas)”.
“Tragédias, meus senhores, são entidades substancialmente familiares. Estrangeiros nunca são trágicos; são apenas inimigos, a quem se pode eliminar sem remorso”.
O PROFESSOR | Cristovão Tezza
Editora: Record;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Março, 2014.