Pouco abordados na literatura, os conflitos invisíveis entre os pais e os seus filhos que ascenderam socialmente (às custas, sem dúvida, do trabalho duro e mal remunerado dos progenitores) formam um tema rico e ainda cercado de uma certa incompreensão. É neste terreno, que Annie Ernaux visita em boa parte de suas obras, que o sociólogo brasileiro José Henrique Bortolucci ousa pisar no belíssimo O Que é Meu (editora Fósforo, 2023).
Misto de romance biográfico e ensaio, a obra traz um relato que simultaneamente comove e provoca o leitor. Trata-se de uma espécie de despedida ao pai do escritor, o caminhoneiro Didi. Por mais de cinquenta anos, o homem – um descendente de italianos que se instalou com sua família em Jaú, no interior de São Paulo – percorreu as estradas de todo o país enquanto testemunhava, mesmo sem saber, uma grande transformação, na qual sua profissão era reconhecida como um símbolo do progresso e como uma das poucas alternativas de ascensão social para pessoas como ele.
Ao mesmo tempo em que faz um registro da história oral de Didi, Bortoluci estabelece diálogos com autores vindos das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que o ajudam a amarrar a memória do pai.
Foi esse trabalho, concretizado nas estradas inacabadas do Brasil, que possibilitou que Didi proporcionasse uma vida melhor aos dois filhos. Contudo, ele também criou uma espécie de abismo entre ele e o filho, que se tornou doutor em Sociologia pela Universidade de Michigan e professor universitário da Fundação Getúlio Vargas. O filho “estudado”, portanto, olha para o pai em uma perspectiva que transita entre o terno, o condescendente e o incompreensível.
A riqueza de O Que é Meu está, certamente, em seu caráter híbrido, que consegue tratar de forma sensível a história de um homem que representa um todo (o caminhoneiro como um sujeito determinante na ideia de progresso que se construía no Brasil entre os anos 60-80) mas que é também um indivíduo único, com suas falhas e acertos e seus dilemas particulares. Um dos aspectos mais interessantes da obra é esta cisão entre a visão de mundo dele e dos seus filhos, que colhem os frutos dos seus sacrifícios.
Cisão entre gerações
Em uma mesa ocorrida na Flip, Bortoluci traduziu poeticamente esse sentimento da distância dizendo que “a experiência de todos os que tiveram migração de classe social é necessariamente de bilinguismo”. Por vezes, esse dissenso entre duas gerações pode ser constatado ao investigar a própria língua. Aqui – tal como Annie Ernaux faz, por exemplo, em O Lugar, mas principalmente em A Vergonha – o autor reconhece no discurso essas marcas pouco visíveis da diferença linguística, como quando nota que o pai usa o verbo “formar” com outros sentidos: “formar como missão coletiva, poder ‘formar alguém’ e, sobretudo, formar coletivamente um irmão mais novo, como era típico em algumas famílias trabalhadoras daquela geração”.
Ascender para além da formação dos pais é, querendo ou não, tornar-se um estrangeiro. Mas como olhar para isso (ao fato de que os pais se tornaram mais “simples”) sem utilizar o binóculo algo canibalesco do turista? A saída encontrada pelo escritor é transitar entre os gêneros, misturando a literatura com uma espécie de revisão bibliográfica com autores que tangenciaram os mesmos assuntos.
Ao mesmo tempo em que faz um registro da história oral de Didi, Bortoluci estabelece diálogos com autores vindos das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que o ajudam a amarrar a memória do pai (e a sua própria memória) com a compreensão de que, aqui, se fala de algo maior e mais profundo.
O fato é que, ao falar de Didi, José Henrique Bortoluci fala sempre do Brasil. A micro-história do pai acolhe o macro. Mas quem são os caminhoneiros, essa classe outrora tão representativa do que se esperava ao país (através do sonho frustrado da construção da Rodovia Transamazônica, que era vendida como uma solução ao atraso da nação), mas que, em momentos atuais, vive num limbo dos que não creem em mais nada – a ponto de se associarem a movimentos golpistas? A pesquisa/ testemunho de Bortoluci esclarece a dificuldade dos pesquisadores em consolidar uma unidade em uma mesma classe, ao mesmo tempo que esclarece a necessidade de sempre investigá-la.
Vale ainda destacar por fim outro trunfo desta obra, que talvez seja menos óbvia. Ao partir de seu repertório teórico como professor e pesquisador para investigar um tema supostamente pequeno (a vida de uma única pessoa), Bortoluci parece trazer uma importante resposta à sociedade sobre a aplicação daquilo tudo que ele estudou: para possibilitar que tenhamos mais clareza sobre quem somos. Em tempos em que a pesquisa científica é tão menosprezada no país, esta é uma mensagem e tanto.
O QUE É MEU | José Henrique Bortoluci
Editora: Fósforo;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Março, 2023.
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