Expectativa é uma merda, a gente sabe. Nem sempre é culpa do autor, ainda mais quando ele é um estreante, mas fica meio impossível não esperar um puta livro quanto tá lá cravado na capa a frase “O novo fenômeno literário brasileiro”. Sei lá, eu vejo isso e já espero uma obra-prima.
O Sol na Cabeça não é uma obra-prima e também não me parece um fenômeno literário no sentido… literário. Explico: provavelmente o livro é um fenômeno comercial, porque os direitos foram vendidos pra trocentos países antes mesmo da publicação, saiu matéria elogiosa em tudo o que é jornal etc, mas é só isso. Ok, marketing faz parte do jogo, não é a primeira e nem a última vez que usam frases meio delirantes pra vender livro, mas o que acho foda, no caso do livro do Geovani Martins, é uma frase que está na contracapa: “….contos que retratam a infância e adolescência de moradores de favela como jamais foram retratados”.
Vou repetir: “como jamais foram retratados”. Tem como ler um troço desses e não pensar “Teu cu!”?
O que Geovani Martins tem de melhor é o pleno domínio da linguagem, em especial das inúmeras nunces e ritmos da oralidade.
Aí fica difícil, durante a leitura, tirar da cabeça Aluísio Azevedo, Paulo Lins ou João Antônio, ou ainda, pra ficarmos num exemplo mais recente e de outro estado, o próprio Ferréz. O pensamento sugerido é de que o cara fez algo muito diferente e muito melhor (já que se tornou um fenômeno tipo o Ronaldinho da literatura). A constatação vem fácil, já nos primeiros contos: não, ele não fez.
Porém, isso não quer dizer que o livro seja ruim; alguns contos até são, mas tem umas coisas bem boas ali também.
É meio difícil levar a sério um novo fenômeno da literatura brasileira quando ele me solta um conto com metáfora de borboleta e lagarta no meio do livro. É sério. Em 2018. Aquele “como jamais foram retratados” fica quicando na cabeça, mas se você respirar fundo e ir em frente, pode encontrar contos bem bons como “Travessia” e “Sextou”, por exemplo.
O que Geovani Martins tem de melhor é o pleno domínio da linguagem, em especial das inúmeras nunces e ritmos da oralidade. É interessante perceber como o autor explora diferentes níveis de coloquialismo, dependendo do personagem que está falando. Tem muito escritor contemporâneo que não consegue escrever um mísero diálogo convincente e o Geovani foi lá e escreveu um livro inteiro em que você bota fé que aquelas pessoas são de verdade, que pensam e falam daquele jeito.
Conta ponto o fato de que o cara é de lá, ele nasceu em Bangu, trabalhou em tudo o que é coisa, tipo homem-placa e garçom, e transformou muito do que viveu/ouviu em ficção. Um escritor que nunca nem chegou perto da periferia talvez até consiga escrever uma história fascinante que se passa por lá, mas será muito mais difícil conseguir captar tantos detalhes relevantes que se espalham na linguagem e na forma de enxergar o mundo.
Ler o livro do Geovani Martins é meio que como se você o encontrasse no busão lotado e ele fosse contando umas tretas que aconteceram recentemente, as batidas que tomou da polícia, a vez que pegou a arma escondida do pai, etc. Isso torna a leitura muito fluida, mas também não garante que o que ele conta seja sempre bom. Tem muita história fraca em O Sol Na Cabeça. A pior talvez seja “A viagem”, um conto sobre uma galera chapada que repete obviedades e vai do nada para lugar nenhum. Às vezes tá lá a prosa fudida de boa, mas parece que ele não tem muito o que contar, não consegue atravessar a superficialidade, e fica aquele meio termo entre crônica e conto, mas não no bom sentido.
Algo que me parece problemático no livro é que ele é muito literal, tudo é muito chapado (não só no sentido Bob Marley), às vezes óbvio, quase sem abrir qualquer possibilidade para mais de uma interpretação, contradições, ou simplesmente para a reflexão a respeito de uma resposta que não foi dada. É tudo muito explicadinho, há poucas camadas.
Por outro lado, Geovani Martins acaba representando uma voz que geralmente tem pouco espaço na literatura. Enquanto na música o que não falta é espaço para as vozes dos desfavorecidos, na literatura ainda prevalecem estantes abarrotadas de sofrimentos da classe média branca. Essa precariedade de perspectivas no mundinho literário faz com que, por exemplo, qualquer música do Rincon Sapiência seja infinitamente melhor do que os contos de Geovani Martins, tanto no sentido da capacidade narrativa, quanto no de desenvolvimento de um discurso crítico a respeito das condições de vida na periferia. Enfim, é como se através das letras das músicas o rapper produzisse um tipo de literatura que é melhor do que a que andamos vendo em alguns livros.
Provavelmente temos vários escritores bons escrevendo sobre uma realidade que vai muito além do que a seção policial do jornal nos mostra, mas quantos deles conseguem chegar até uma editora grande? Geovani Martins conseguiu, mérito dele.
De qualquer forma, não deixa de ser positivo ver que ainda existe uma brecha no mercado editorial e que aparentemente há um público que se interessa por essas histórias. Só fica a torcida para que esse tipo de oportunidade abra espaço para livros melhores.
O SOL NA CABEÇA | Geovani Martins
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 112 págs.;
Lançamento: Março, 2018.