A figura da sereia é sempre ambígua e representa sedução e perdição, condições humanas que caminham lado a lado e, em geral, se cruzam inúmeras vezes. Na Odisseia, Odisseu tampa seus ouvidos com cera para fugir ao canto das mulheres-peixe. Em Os Continentes de Dentro, o primeiro da escritora venezuelana María Elena Morán, o mito é exumado, colocado diante da perspectiva do conflito íntimos.
Sofia, apelidada de Sereia pelo avô que praticamente não conheceu, vive uma relação distante e estranha com a mãe, uma mulher como que transubstanciada em algo que não se é possível definir. Se ninguém é uma ilha, como explicar tamanha cisão? A partir dessa construção, em que os opostos se atraem, Os Continentes de Dentro é uma espécie de revelação de naturezas e um contingenciamento sentimental. O leitor, carregado entre cartas e reflexões, é colocando cara a cara com as suas próprias dores. Sob essa perspectiva, Morán consegue fazer seu romance ser herdeiro do legado clariceano, sobretudo, na tentativa de investigação do sujeito perante si e os demais.
Os Continentes de Dentro é uma espécie de revelação de naturezas e um contingenciamento sentimental.
Em um momento em que a realidade se torna insuportável, Os Continentes de Dentro propõe exatamente o oposto: um mergulho interior. Essa estratégia, de fuga e imersão, não poupa leitores e personagens de um terremoto intenso. Existe algo na prosa de María Elena, e provavelmente se trata da maneira como escolhe cada palavra, que potencializa essa experiência de entrega.
Ruínas cotidianas
María Elena Morán é da mesma geração – e turma – de escritores como Davi Boaventura e Julia Dantas, ambos também exímios escrutinadores das ruínas cotidianas. Como Alejandro Zambra, escritor chileno capaz de reproduzir as miudezas do dia a dia como poucos, Os Continentes de Dentro se debruça sobre os gestos invisíveis, sobre a impossibilidade de manter-se verdadeiramente isolado.
O rompimento entre mãe e filha é a gênese de uma refração ainda maior e mais ampla: a necessidade de encontrar o seu lugar no mundo. A família para Morán é uma figura de linguagem, assim como toda a constituição social. Tudo não passa de um jogo político indissociável da condição humana. Para sobreviver é preciso estar subserviente às regras. Sofia não é de baixar a cabeça para esses limites e é nessa inconfidência que reside todo o ardor do livro.
E o romance só funciona porque não existe superficialidade. Toda o universo de María Elena Morán é elevado à máxima potência. Tudo é para agora, esse instante perigoso e vasto. É impossível passar ileso a Os Continentes de Dentro.
OS CONTINENTES DE DENTRO | María Elena Morán
Editora: Zouk;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2021.