Há pouco mais de um mês, uma pequena treta literária viralizou a internet. A história – que envolve uma situação com uma escritora e seu ex-marido abusivo – acabou criando um breve frisson nas redes. Essa celeuma atingiu não apenas o homem antagonista na história, mas também os amigos do marido (todos eles pessoas ligadas aos círculos literários do país) que receberam e-mails em que ele contava as suas traições e que, supostamente, foram cúmplices delas.
Por cerca de duas semanas, os envolvidos nessa história sofreram um cancelamento virtual gigantesco, com muitas cargas de ódio enviadas por pessoas aleatórias da internet e direcionadas a todos eles: a escritora traída, o marido traidor, os amigos que sabiam da história, as atuais mulheres deles. A raiva, além disso, serviu para catalisar todo o tipo de frustrações: segundo o tribunal da internet, todos ali eram pedantes, incompetentes, privilegiados. O grupo de personagens dessa história se tornou um alvo para extravasar o que havia recalcado no público formado por incontáveis anônimos.
Diferente do que talvez se possa esperar, aqui, Virginie Despentes não direciona sua arma apenas para os homens sentados por séculos sobre os seus privilégios.
É impossível não lembrar desse caso durante a leitura de Querido Babaca (editora Fósforo, 2024, tradução de Marcela Vieira), o romance epistolar (só que, ao invés de cartas, são e-mails) da escritora francesa Virginie Despentes, um dos nomes mais potentes (e raivosos) da literatura feminista contemporânea. Ela narra aqui uma história que também fala de cancelamento: o de um escritor razoavelmente famoso, Oscar Jayack, que cai nas graças (ou desgraças) das feministas quando uma antiga assessora de imprensa, Zoé Katana, resolve montar um blog falando do assédio que sofria quando trabalhou com ele.
Zoé, como logo descobrimos, aguentou calada as cantadas inconvenientes de Oscar, supostamente apaixonado por ela, mas que não conseguia enxergar o quanto o seu “encantamento” era indesejado. Sem aguentar mais, a jornalista pede para deixar de trabalhar com ele e nunca mais consegue um posto à altura de sua competência. Ela então convive com a raiva sobre o tudo que perdeu em razão do assédio.
Enquanto isso, Oscar Jayack passa incólume. Até que, durante a pandemia e na esteira do #MeToo, Zoé jogar o seu ódio nessa arena cheia de hienas à espreita de qualquer cheiro de sangue: a internet.
Mas há um contraponto – e que, para nossa surpresa, ele vem também de uma mulher. Durante a sua descida ao inferno, um atrito virtual faz com que o escritor se reaproxime de Rebecca Latté, uma belíssima atriz francesa na casa dos 50 anos, que ele conheceu superficialmente na infância (Rebecca era amiga de sua irmã).

A briga é comprada quando Jayack posta no Instagram uma mensagem mal-humorada criticando a aparência da diva (“O fascínio da sedução feminina acabou virando um sapo. Não apenas velha. Mas gorda, descuidada, a pele nojenta, uma personalidade imunda e estridente”). Ela o responde por e-mail, abrindo a conversa pela saudação que nomeia o romance: “Querido Babaca”.
O que se segue, a partir de então, é uma troca frenética de mensagens entre os dois, que aos poucos criam um vínculo e compartilham aspectos extremamente íntimos de suas existências. Em comum, ambos estão perdidos. Oscar é um homem sem lugar, que vê aos poucos seu lugar privilegiado no mundo ir sumindo por conta dos ataques de pessoas que não conhece, e por aquilo que julga como ingratidão das mulheres que ele não consegue mais entender. Já Rebecca se confronta com a sua vida que sempre foi regida pela beleza, de quem recebeu tudo; ao mesmo tempo, as novas gerações seguem lhe mostrando que isso não tem mais valor.
‘Querido Babaca’ e a realidade complexa do cancelamento

Querido Babaca talvez surpreenda os fãs mais fervorosos de Virginie Despentes porque a faz dar provas de seu talento para olhar fenômenos complexos por vários ângulos. Diferente do que talvez se possa esperar, aqui, a escritora francesa não direciona sua arma apenas para os homens sentados por séculos sobre os seus privilégios. De certa forma, ela “ouve” todos os lados a partir dos personagens, e até manifesta alguma compaixão pelo infeliz Oscar.
Da mesma forma em que o #MeToo não é um movimento plano e homogêneo, o romance se debruça também sobre as nuances tênues da solidariedade entre as mulheres. Rebecca se condói do drama da jovem assessora que foi assediada, ao mesmo tempo em que a considera fraca: ela se compraz de ter sido capaz de aguentar tudo, até um estupro.
Como diz Zoé em certo trecho: “Não são só os homens que pedem para ficar calada. As mulheres também. Me explicam que aquilo que eu vivi sempre existiu e que elas conseguiram dar a volta por cima”. Nesse sentido, Rebecca Latté remete a Catherine Deneuve, uma das grandes divas do cinema francês que, em certo momento, assinou uma carta que defendia que os homens mantivessem seu “direito de flertar”.
A munição de Virginie Despentes, de algum modo, não está reservada aos personagens, todos eles mergulhados em sofrimentos mais ou menos legítimos. O inimigo parece ser a própria internet. Por isso, abundam as frases feitas (algumas originais, outras talvez nem tanto) que definem a rede mundial dos computadores como um dos círculos do inferno: “O problema da internet é que quem gosta de você tem menos necessidade de sair gritando aos quatro ventos do que as pessoas que querem te ver enforcado”, escreve.
Paradoxalmente, a tônica que cerca os personagens de Querido Babaca é a esperança que surge quando se atinge o fundo do poço. Todos tentam buscar algum alívio para as suas angústias, e aos poucos vão se deparando com algum respiro possível frente à arrogância em que viviam até ali – seja encarando o alcoolismo, a adição às drogas e os problemas de saúde mental.
No saldo, o que temos é mais um livro em que Virginie Despentes brilha e desponta como uma das vozes literárias que mais merecem ser ouvidas: “A internet é um lugar visceral. Às vezes você pode encontrar alguém usando-a como antigamente, para expressar ideias complicadas e debater argumentos. Mas em geral a militância na internet é um fanatismo em estado puro: basta as pessoas pensarem que estão do lado certo da moral para achar decente estrangular o adversário”. O trecho cabe na França, em uma treta nos círculos literários em São Paulo, mas também na vida de qualquer um de nós.
QUERIDO BABACA | Virginie Despentes
Editora: Fósforo;
Tradução: Marcela Vieira;
Tamanho: 280 págs.;
Lançamento: Julho, 2024.
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