Em um calmo subúrbio norte-americano, em plenos anos 70 fervilhando em mudanças, cinco irmãs adolescentes, criadas sob a tutela rígida dos pais em um lar conservador, resolvem se matar. Popularizada mundialmente pelo filme de Sofia Coppola, a história do romance de estreia de Jeffrey Eugenides é já bastante conhecida, e encontra spoiler já no título. O que talvez parecesse um enredo de um romance policial barato ou a manchete gritante de algum jornal popularesco torna-se uma pequena grande obra nas mãos no escritor greco-americano. Mas que se esclareça desde já: a experiência com a trama contada em As Virgens Suicidas (Companhia das Letras) não se localiza, portanto, no desvendamento de um mistério, que já está dado desde as primeiras páginas.
Tampouco se trata de uma obra centralizada em morte e depressão, mas sim na inescapável tragédia – e/ou comédia – da juventude, quando tudo, inevitavelmente, parece maior do que é. Conforme já dito, o mistério que cerca as irmãs Lisbon se situa menos em fatos concretos e mais na leitura apaixonada que os vizinhos adolescentes fazem delas, projetando na história um ar de deslumbramento, delicadeza e devoção adolescente. A leitura rasa e recorrente de que o romance se centralizaria na pergunta “por que elas se mataram?”, ao que me parece, acaba por esconder (e mesmo menosprezar) os trunfos da narrativa. Ou seja, não estamos diante de um tratado sobre o suicídio, nem de uma tentativa de um diagnóstico moral ou uma lição de “como criar com os filhos” – já que a interpretação mais simplória a se fazer do livro é a de procurar alguém para culpar (pais, escola, religião, costumes) das mortes das belas moças.
Em As Virgens Suicidas, Jeffrey Eugenides enfrenta, pela primeira vez, o interessante desafio de representar personagens femininas, o que parece ser um fio condutor das obras do escritor. Seja com a algo neurótica Madeleine Hanna, em A Trama de Casamento (2011), a desencaixada Caliope em Middlesex (2002) ou as incompreendidas irmãs Lisbon em As Virgens Suicidas, Eugenides constrói as mulheres de seus livros com delicadeza e sensibilidade um tanto surpreendentes no retrato das sutilezas do feminino. A descrição das infindáveis (e um tanto inúteis) análises do discurso amoroso feitas por Madeleine em A Trama de Casamento não deixa dúvidas de que este é, definitivamente, um autor que consegue reproduzir em linguagem como se sentem as mulheres.
Talvez o âmago de As Virgens Suicidas possa ser identificado e resumido no muito conhecido diálogo que abre o romance. Quando Cecilia, a mais jovem das cinco irmãs Lisbon, é internada após uma tentativa de suicídio, o médico que a atende não consegue deixar de perguntar quanto às razões que alguém tão novo, que ainda não viu a maldade do mundo, teria para querer morrer. A resposta, tão enigmática quanto translúcida – “É óbvio, doutor, que o senhor nunca foi uma menina de treze anos” –, ecoa a cada página na qual esta história se desdobra. Esta é uma pista definitiva das razões pelas quais a investigação feita pelos vizinhos apaixonados seria, fatalmente, uma corrida rumo ao nada.
Diferente de seus outros romances, em que o foco narrativo “encarna” no ponto de vista de suas protagonistas, em As Virgens Suicidas Eugenides incorpora um olhar voyeur, posto que a história assombrada das irmãs Lisbon é contada por uma espécie de investigação pessoal realizada pelos seus vizinhos, nunca nomeados, que assistem a tudo o que ocorre na casa pelas janelas e portas e passam os anos da juventude coletando as pistas sobre seus objetos de devoção. Em nome de sua fixação, eles colecionam cheiros, cores, sensações, texturas, amantes alheios, tentando reconstituir, numa espécie de missão impossível, o mundo em que as meninas habitavam.
Mas, ao contrário do teor predatório do voyeur que se alimenta e se regozija com os detalhes da tragédia, o olhar dos vizinhos é apaixonado e terno. Eles veem as irmãs, tidas como esquisitas por todos, como a própria idealização do feminino que um dia adentraria em suas vidas, mas que permanece ainda no campo da fantasia. É nítido que a fixação dos meninos com as irmãs e suas mortes aponta a uma metáfora da não concretização do sonho do amor ideal, posto que os vizinhos – que narram a história já adultos – deixam bastante claro que jamais encontrariam satisfação nas mulheres reais com quem um dia se relacionariam, uma vez que cresceram atrelados ao desejo irrealizável pelas virgens suicidas. Fica claro, ao longo da história, que as cinco Lisbon só existem como tal na imaginação dos devotos. Misteriosas e incompreensíveis, tudo o que sabemos sobre elas se dá a partir da visão eternamente afastada de seus admiradores.
Há, ao longo do romance, o prenúncio de um humor grego tipicamente ácido, que seria posteriormente o mote central do premiado Middlesex e que permearia toda a obra posterior de Jeffrey Eugenides.
Ainda que os narradores da história não sejam suficientemente desenvolvidos enquanto personagens – o que, me parece, é uma estratégia proposital para destacar a obsessão adolescente, já que eles acabam por esquecer de si mesmos -, Eugenides constitui o cenário dos subúrbios com a qualidade de uma narrativa que consegue enxergar humor no drama inevitável. O ar de liberdade que se prenunciava pelo ideal hippie da década de 1970 é o pano de fundo que se contrapõe à intransigência do casal Lisbon.
O cenário que confronta a contracultura que emerge com a caipirice suburbana é costurado por meio de uma série de personagens tangenciais, algumas bastante engraçadas: as vizinhas bêbadas desde cedo de manhã e que mal sabem distinguir aquilo que veem, o menino que volta como galã da mulherada após experiências tórridas durante as férias de verão em Acapulco, o pai que se “lustra” com óleo para bronzear e passa o dia todo de roupão, as meninas apaixonadas deixando recadinhos nos vidros dos carros, os adolescentes lutando para parecer menos adolescentes nas festinhas, as amizades e os amantes fugazes de colégio.
Há, ao longo do romance, o prenúncio de um humor grego tipicamente ácido, que seria posteriormente o mote central do premiado Middlesex e que permearia toda a obra posterior de Jeffrey Eugenides. Esta comicidade sutil, que ri forçosamente do trágico, transparece em várias cenas. Em certo momento, a avó grega de um dos meninos da trama, que coleciona bichos de seda no porão o qual habita à espera da morte – tal qual ocorreria com a avó de Callie em Middlesex -, se escandaliza ao ver a tentativa do senhor Lisbon de seguir a sua vida após a morte das filhas. O menino explica: “Nós, gregos, somos um povo de humor instável. O suicídio faz sentido para nós. Instalar luzes natalinas depois que a própria filha se matou – isso não faz sentido algum. O que minha yia yia nunca conseguiu entender nos Estados Unidos é porque as pessoas passam o tempo inteiro fingindo que são felizes.”
Mesmo que muitas vezes seja reduzido a um romance menor, destinado apenas a meninas hipsters (em partes, acredito, pela adaptação cinematográfica feita por Sofia Coppola e sua estética), justiça seja feita: As Virgens Suicidas é uma obra impactante, algo modorrenta, conseguindo transpor ao leitor, com bastante precisão, o que vê e sente aquele que convive com a depressão. Mas seu grande trunfo é, por fim, retratar os abismos intransponíveis que habitam entre todos – entre adultos e meninas de treze anos, entre pais e seus filhos, entre os melancólicos e os alegres, entre as garotas que querem ser possuídas e os garotos que nunca as terão.
AS VIRGENS SUICIDAS | Jeffrey Eugenides
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Daniel Pellizzari;
Quanto: R$ 35,35 (232 págs.);
Lançamento: 1993.
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