Tem algo de simbólico no ato de tingir os cabelos de loiro. Não por acaso, em um dos trechos que abrem o livro Loira Suicida, de Darcey Steinke – um mini-clássico feminista de 1992, editado apenas este ano no Brasil – a protagonista, Jesse, descolore as madeixas, e reflete: “se eu tivesse coragem de cortar os pulsos, será que ia me dar ao trabalho de pintar os cabelos?”.
Talvez os cabelos descoloridos sejam a chave para entrar na história dessa mulher de 29 anos, filha de um pastor luterano e de uma mãe algo submissa, algo narcisista, que adentra em um submundo trash na San Francisco dos anos 90. Ela está obcecada por seu namorado (?), o bissexual Bell, com quem divide um apartamento e cujos desejos ela não consegue controlar. Jesse não consegue evitar de enxergar nele o amor da sua vida, embora saiba que ele permaneça apaixonado por Kevin, seu primeiro amor, que irá em breve se casar com uma mulher.
Loira Suicida (nenhuma relação com a música do INXS) é uma pequena obra em primeira pessoa, que tem uma espécie de gosto de “fim de festa”. São os anos 90, e todos os ideais utópicos da ideologia hippie parecem ter se esgotado. Os personagens que orbitam em torno de Jesse são algo destruídos: o apático Bell, uma milionária obesa chamada Pig, a quem Jesse presta pequenos serviços, a obscura Madison, uma stripper por quem Pig parece obcecada, o homem desconhecido que aparece um dia na cama em que Jesse dorme. Tentando descobrir o que fazer com os sentimentos que sente por Bell, Jesse mergulha neste universo de pessoas cujas vidas giram em torno de drogas, bares decadentes e muito, muito sexo – na maior parte das vezes, em cenas um tanto deprimentes.
A grande qualidade de Loira Suicida se encontra na qualidade deste solilóquio que Jesse mantém consigo mesma, fazendo considerações que parecem fortes, mesmo quase 30 anos depois do lançamento desta obra.
A grande qualidade de Loira Suicida se encontra na qualidade deste solilóquio que Jesse mantém consigo mesma, fazendo considerações que parecem fortes, mesmo quase 30 anos depois do lançamento desta obra. Em certo momento, quando resolve abandonar Bell e procurar outro lugar para morar, ela nota que não tem quase nada. “Queria parar de achar que acumular coisas – pessoas, casas, carros – ia me consolar ou salvar. Mas só de pensar em não ter nada eu sentia medo, porque aquilo se parecia demais com a morte”.
Destaca-se, sobretudo, os trechos do livro que trazem alguma luz sobre o discurso sobre o feminino que só ganharia força ao longo das décadas seguintes. Quando encontra o personagem Habee, que é hermafrodita, Jesse ouve: se os homens ainda caçassem ursos ou cervos, a maioria ainda estaria satisfeito com a esposa. Em outro momento, Jesse afirma que as mulheres têm dificuldades em enxergar onde elas terminam e onde começam os outros. São como água. Uma definição muito precisa sobre o que significa ser mulher nesse mundo.
Perturbador, Loira Suicida incomoda pelo tom lúgubre que acompanha todas as páginas, e pela impossibilidade de todos os personagens de encontrar alguma redenção em suas jornadas. Ressalto ainda a linda capa em tons rosa e laranja, que é um recorte da fotografia “Candy Darling on her deathbed”, de Peter Hujar – um retrato da transexual Candy Darling (a musa de Lou Reed, retratada em várias músicas dele), um pouco antes de morrer de câncer, aos 39 anos. Um registro belo e profundamente melancólico, assim como a obra de Darcey Steinke.
LOIRA SUICIDA | Darcey Steinke
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Simone Campos;
Tamanho: 195 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2021.