É provável que a experiência de muita gente com quadrinhos envolva algum super-herói ou algo derivado deste universo mítico. Pois há quarenta anos, em 1982, a editora Fantagraphics publicava uma revista criada artesanalmente por dois irmãos que marcaria para sempre os rumos tomados pela cena dos quadrinhos independentes ao criar uma história bem “terrena”, ainda que com toques de ficção científica.
Falo aqui de Love and Rockets, a revista em quadrinhos elaborada pelos irmãos hispano-americanos Jaime e Gilbert Hernandez, que trouxe ao mundo personagens muito marcantes e que seguem até hoje influenciando os fãs de quadrinhos. Só para se ter uma ideia, o escritor Neil Gaiman e o mestre dos quadrinhos Robert Crumb se declararam já como grandes fãs do trabalho dos Hernandez.
E o mais curioso é que os universos (Love and Rockets, por ser uma HQ criada a quatro mãos, comporta duas revistas em uma só) deste clássico foram elaborados por irmãos que cresceram no meio de quadrinhos – seu primeiro contato com esta arte se deu porque a mãe deles era muito fã do formato. Jaime e Gilbert eram dois jovens que trabalhavam como zeladores na pequena cidade de Oxnard, na Califórnia e gastavam seu escasso dinheiro para assistir a shows de punk nas cidades próximas.
Um dia, os dois irmãos (Gilbert tinha 24 anos e Jaime, 22) montaram uma revista e lançaram de forma independente. Um ano depois, ela seria publicada pela editora Fantagraphics e Los Bros Hernandez (como eles por vezes assinam) nunca deixariam mais de produzir – seja para a própria L&R, seja em publicações individuais.
As Locas
A revista Love and Rockets (cujo nome estranho, “amor & foguetes”, aponta para a profissão de uma das personagens principais) se divide em duas linhas facilmente reconhecíveis, como se houvesse duas publicações em uma. Quem é fã sabe facilmente identificar pelo traço qual dos dois está desenhando, mas também porque criaram universos bem distintos.
Jaime Hernandez criou a história “Hoppers 13” (também chamada de “Locas”), centralizada em personagens femininas que se tornaram muito famosas. As principais são Maggie (cujo nome completo é Margarita Luisa Chascarillo), que é mecânica de foguetes, e sua melhor amiga, Hopey (cujo nome é Esperanza Leticia Glass), uma punk que toca baixo e é uma lésbica bastante sedutora. O relacionamento de Maggie e Hopey transita entre o amoroso e o fraternal, mas elas nunca se largam, embora se envolvam com outras pessoas.
Em torno do universo das Locas, circulam outras personagens marcantes, como a temperamental Terry, com quem Hopey teve um relacionamento; Penny Century, uma mulher voluptuosa que sonha em ser uma super-heroína; a sombria Izzy Ruebens e Rena Titañon, tia de Maggie, que é campeã de luta livre (cuja subtrama é explorada de forma riquíssima por Jaime).
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As Crônicas de Palomar
Já Gilbert desenvolveu a trama paralela, e completamente diferente, de Palomar. Diferente das Locas, que se passa numa cidade americana (Hoppers, que lembraria muito a Oxnard que os irmãos cresceram), a trama de Gilbert se passa num vilarejo pequeno chamado Palomar, com 386 habitantes, e que fica em algum lugar na América do Sul.
As personagens criadas pelos irmãos Hernandez fizeram tudo: elas influenciaram a estética que circulava no mundo indie e trouxeram para as HQs a identidade chicana de seus criadores.
Lá, vive Luba, uma mulher de passado misterioso, de peitos grandes e temperamento explosivo (Gilbert declarou que sua referência foram os filmes de Sophia Loren). As crônicas de Palomar giram em torno de Luba e sua família. Para alguns fãs (eu inclusa), talvez o traço de Gilbert pareça um pouco menos sofisticado que o de Jaime. Por outro lado, suas histórias são tidas como das mais inventivas e ricas já criadas nos quadrinhos.
Gilbert elaborou uma atmosfera em Palomar que por muitos foi referida como próxima às histórias criadas pelo colombiano Gabriel García Marquez em suas obras. Junto com suas irmãs, suas filhas e suas avós, Luba se envolve em tramas extremamente femininas em que a realidade de uma vida globalizada se tensiona o tempo todo com o realismo fantástico suspenso nas histórias do vilarejo. É uma verdadeira obra-prima do gênero.
A riqueza de ‘Love and Rockets’
Mesmo que a revista pudesse ser classificada como ficção científica light (tanto na dinâmica dos foguetes nas Locas, quanto no misticismo em Palomar), com leves toques de comédia, Love and Rockets foi muito impactante pois conseguiu construir um universo particular habitado sobretudo por mulheres, e que tinha tudo a ver com os ânimos punk e pós-punk que movimentavam os anos 80.
As personagens imaginadas pelos irmãos Hernandez fizeram tudo: elas influenciaram a estética que circulava no mundo indie e trouxeram para as HQs a identidade chicana de seus criadores. “Em algum momento, eu pensei, ‘Maggie é mexicana’. Nos quadrinhos, era natural pensar nos personagens como pessoas brancas, mas me lembro de pensar: ‘Por que meus personagens não são como eu ou as pessoas que vejo ao meu redor?’”, declarou Jaime Hernandez ao The New York Times.
Outra coisa que pode parecer hoje já datada, mas que, em 1981, era novidade: as personagens presentes na HQ eram pessoas com corpos reais. Maggie engordava ou emagrecia ao passar dos anos. Palomar tem personagens barrigudos, velhos com rugas, pessoas com muitas cicatrizes.
O realismo destas histórias (sempre permeado pela mágica punk de serem quadrinhos que tiraram proveito do do it yourself, ao invés de serem elaborados em escala industrial, por vários autores) fortaleceu o vínculo com os tantos fãs espalhados pelo mundo.
Para completar, os irmãos Hernandez seguem produzindo até hoje. E o mais incrível: as personagens envelheceram com eles. Maggie era uma adolescente nas primeiras revistas, e hoje é uma mulher chegando aos 60 anos. A punk Hopey tomou rumo e virou professora. E Luba ganhou cabelos grisalhos e se tornou uma senhora sábia.
Quarenta anos depois, Love and Rockets permanece como uma das obras mais grandiosas e originais criadas para os quadrinhos. Que tenhamos a sorte de continuar desfrutando do talento dos Hernandez por muito tempo ainda.
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