Quando Barba Ensopada de Sangue foi lançado em 2012, veio cercado de expectativas devido a um hype muito grande que foi se formando ao redor do livro, que foi vendido até com mais de uma opção de capa. O resultado disso é que bastante gente torceu o nariz não porque o livro era ruim (pelo contrário, é bom), mas porque ele não era bem aquilo que as pessoas esperavam. Como se vê por aí, não é apenas o leitor médio que tem dificuldade de lidar com anticlímax e descrições na literatura, parece que muitos escritores que gostam de fórmulas prontas também têm. Até hoje vejo gente de má vontade com o autor, não por causa da qualidade, estilo de narrar ou relevância de sua obra, mas sim pela atenção que ela recebe. Enfim, como diria o filósofo: a inveja é uma merda mesmo.
Curiosamente, esse tipo de frustração com as coisas que não acontecem exatamente como a gente queria está presente em Meia-Noite e Vinte, o novo livro de Daniel Galera publicado pela editora Companhia das Letras. Não, o autor não manda indiretinhas para seus detratores, pelo contrário, fala sobre uma geração da qual ele mesmo faz parte.
O romance fala sobre quatro amigos porto-alegrenses que tiveram um fanzine digital nos anos 90, tal como o próprio autor teve junto com seus colegas, lá nos primórdios da internet (quem baixava discador da AOL e esperava meia-noite para conectar pra pagar só “um pulso” sabe do que estou falando).
Aurora é uma bióloga pesquisadora que se vê às voltas com uma treta que envolve questões de gênero e de hierarquia acadêmica (inclusive essa parte lembra um pouco o Indignação, do Philip Roth, leia a crítica aqui), Antero é um artista plástico que resolveu ganhar dinheiro com publicidade, Emiliano é um jornalista que enfrenta o declínio de sua juventude e de sua profissão. Os três se reúnem décadas depois da época do fanzine, pois Andrei, o quarto amigo, um escritor de bastante destaque na literatura brasileira, foi assassinado de forma estúpida numa rua de Porto Alegre.
A Porto Alegre revisitada pelos personagens arde sob um sol inclemente que faz aflorar a podridão dos lixos nas ruas e a sensação de que tudo anda meio insuportável.
Galera dá voz aos três amigos, então os capítulos são narrados em primeira pessoa de forma alternada por eles mesmos, seguindo o vocabulário e o jeitão de cada um. Para além da tragédia envolvendo o amigo, o que une os personagens é uma profunda sensação de inadequação, como se estivessem perdidos numa plataforma vazia cujos trens já tivessem partido. Pesa no peito de todos uma sensação de que o melhor da vida já passou e talvez eles não tenham prestado muita atenção: “O Duque [apelido de Andrei] que estava de uma certa forma sentado à nossa mesa era aquele de mil novecentos e noventa e nove, quando eles tinham seus dezoito anos, e eu vinte e cinco, aquele ano em que havíamos existido com uma intensidade que nunca mais se repetiria”.
O livro trata da frustração daquela geração que cresceu sob relativa estabilidade econômica e diante das promessas que se abriam diante de um mundo conectado através da internet. “Nós seguimos bebendo e fodendo e adiando qualquer tipo de compromisso profissional, como se o futuro estivesse garantido, e nosso diário de bordo era um zine eletrônico lido por milhares de pessoas como nós, uns apocalípticos fajutos, apocalípticos de bungee-jump”. Com o passar dos anos e do acúmulo de promessas não cumpridas, uma nova percepção começa a se estabelecer. “A nova angústia era uma expectativa difusa de um sufocamento vagaroso e irreversível, após o qual não restaria nada”.
A Porto Alegre revisitada pelos personagens arde sob um sol inclemente que faz aflorar a podridão dos lixos nas ruas e a sensação de que tudo anda meio insuportável. A cidade vive o caos de uma greve de ônibus e, tal como o trio de protagonista, se vê parada, sem poder e sem saber direito para onde ir. O clima de tensão urbana conta também com os reflexos das manifestações de 2013, que trazem consigo a sensação de instabilidade e ao mesmo tempo de desejo de mudança de uma sociedade que imaginava caminhar para algum tipo de união, mas que no fundo já não se reconhecia, feito o personagem que se infiltra na quebradeira de maneira quase instintiva, como se ao apedrejar um loja, fosse possível demolir o peso do passado.
A explicação para o meia-noite e vinte do título só surge lá pelas últimas páginas e resume de maneira um tanto poética tudo o que o livro discute. É uma baita sacada do autor.
Daniel Galera conseguiu aqui um dos seus melhores e mais singelos trabalhos (acho que é o meu favorito depois do Mãos de Cavalo). Meia-Noite e Vinte é um belo livro que dá conta de suas próprias pretensões, que não são poucas, e que estabelece um vínculo genuíno com qualquer leitor que esteja no alto de seus 30 e poucos anos, aquele sujeito que sente um leve aperto no peito ao pensar sobre aquilo que esperava para o futuro quando mais jovem em comparação com aquilo que se tornou no presente.
Tem livro que parece abraço de amigo, daqueles sinceros tipo “cara, acho que na verdade não vai ficar tudo bem, mas ok, pelo menos a gente tá junto”, esse aqui é um deles.