Em seu texto mais célebre, o irônico ensaio Em Louvor da sombra, escrito pouco antes da eclosão da Segunda Guerra (1939 – 1945) e da corrida militarista do Japão, Junichiro Tanizaki (1886 – 1965) reflete sobre as diferenças entre oriente e ocidente, sobretudo, a respeito da preferência nipônica pela escuridão e pela opacidade. De todas essas distinções – e aí podem-se contar vestuário, arquitetura, culinária, etc, – a que mais chama atenção, pela sua singularidade, é a predileção japonesa por evitar a todo custo que os utensílios de prata e bronze sejam lustrados. Segundo Tanizaki, a prataria perde o sentido se não tiver cravada em sua superfície aquilo que chama de “lustro dos anos”, um resumo materializado das experiências e histórias vividas pelas famílias.
Talvez poucas metáforas caibam tão bem para os narradores de Haruki Murakami quanto esta. Seus personagens são criados através de jornadas pessoais, de buscas infindáveis e de uma consciência ímpar de suas próprias limitações. Se Salinger (1919 – 2010), com O Apanhador no Campo de Centeio, criou o romance de formação, o escritor japonês parece se apropriar desse conceito para estabelecer uma espécie de literatura de amadurecimento. Em O Assassinato do Comendador, sua obra mais recente no Brasil e publicada por aqui em dois volumes, Murakami cria um thriller supernatural e intrigante, que repete boa parte dos elementos e obsessões que fazem parte do seu inventário particular.
Vagando em sua trilha de referências que vão do pop ao erudito, muito à la Tarantino, Murakami mergulha seu protagonista – um talentoso pintor de retratos abandonado pela esposa – em um universo de realismo mágico de isolamento, desilusão, autoconhecimento e longos flashbacks históricos, algo facilmente encontrado em boa parte dos livros como Dance, dance, dance, Caçando carneiros – seu primeiro sucesso – e Kafka à beira-mar, sua obra-prima. Enquanto lida com suas frustrações, o narrador, cujo nome desconhecemos, tenta entender o fim do casamento e viaja pelo interior do Japão em seu velho Peugeot, até que passa a morar na antiga casa de um importante pintor nihon-ga – estilo clássico de pinturas japonesas que nasceu como resposta à ocidentalização da arte no país –, Tomohiko Amada, um homem às raias da morte, mas que guarda um segredo envolvendo conspiração nazista em Viena e questões sobrenaturais.
À medida em que narrativa avança, O Assassinato do Comendador se torna mais e mais povoado de personagens estranhos e complexos, como o milionário Menshiki, um Gatbsy mais astuto, e a adolescente introvertida Mariê Akikawa. A chave do romance, entretanto, não está na sua constelação de habitantes – reais e sobrenaturais –, mas na ópera Don Giovanni, de Mozart (1756 – 1791), da qual a cena mais importante é transformada em um quadro por Amada, em uma espécie de metáfora substanciada da sua passagem pela Europa.
Por meio de Amada, são várias as digressões que expõem a aliança nipo-germânica e o Massacre de Nanquim (1937 – 1938), criando um plano de fundo histórico que ajuda a não apagar um passado belicoso e brutal do Japão Imperial, além de guardar algumas das passagens mais interessantes.
Psicanálise
A literatura de Murakami é pautada pela inexatidão e pela construção de realidades. Se os narradores de escritores como Ian McEwan e Philip Roth têm dentro de si as certezas do universo – num arquétipo de homem-deus –, os de Murakami são conscientes de suas fraquezas e mediocridade. Tal simpleza, entre a sobriedade e a ingenuidade, se reflete em uma prosódia direta e que se descola dos artificialismos literários. Em geral, esse despojamento deságua em uma incapacidade de entender o que está em primeiro plano – “Não consegui compreender direito o que ela queria dizer. Fiquei olhando para ela, os sapatos calçados, a sacola pendurada e uma mão na maçaneta” ou “é muito para o meu cérebro simplório” – e, por outro lado, justifica o savoir-faire de acessar estruturas oníricas ou paralelas.
O Assassinato do Comendador se apoia, como os melhores livros de Murakami, nas múltiplas camadas da consciência, em um sentido psicanalítico – ainda que o escritor já tenha admitido que não se interessa pelos estudos de Freud (1856 – 1939). Boa parte das revelações se dão ou no campo do sonho ou na relação com seres surreais – incorporando aspectos da personalidade do narrador – e por que não? – do autor. Ao mesmo tempo, há sempre uma sensação de incompletude – e isso fica claro neste romance – e de perpétua caça à identidade. Murakami desloca peças banais de cotidianos comuns para construir um ambiente de instabilidade e suspensão.
Mais uma vez, como um bom músico de jazz, Murakami perpetua uma sequência de variações sobre o mesmo tema, mas não perde a linha do grande ficcionista que é.
Nessa lógica, existe sempre uma perspectiva de perda e ausência: a esposa – em Crônica do pássaro de corda e “Kino” –, um trem – Após o anoitecer –, as relações de amizade – O Incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação – ou até mesmo a aptidão para dormir – em Sono. Esse ambiente tipicamente kafkiano, em que pesadelo e realidade são as faces de uma mesma moeda, Murakami propõe também um passeio pelas paisagens da mente e das cidades. Assim como as descrições urbanas são meticulosas e concretas, as interpretações dos estados da mente também correspondem ao real.
Não é admirar que O Assassinato do Comendador surgiu, justamente, a partir do cenário. “A primeira coisa que apareceu foi a paisagem. Uma casa perto do mar, no alto de uma montanha, e no limite: para a frente o céu está limpo e, atrás, sempre nebuloso”, disse o escritor ao El País. Como na filosofia de Rousseau, em que o meio corrompe o homem, os personagens de Murakami são profundamente afetados pelo ambiente. A casa de Amada funciona como um espaço de criação e opressão, em que os fantasmas do velho pintor – que na história são representados por conceitos bastante específicos – assombram quem lá estiver.
Dois caminhos
Todas essas facetas da obra de Murakami o colocam em uma situação delicada: entre o cânone universal e uma literatura considerada ocidentalizada demais em seu país. Tamanha dicotomia explica por que Kenzaburō Ōe, Nobel em 1994, chamasse Murakami de “peso pena” da literatura japonesa. Longe de abraçar o tradicionalismo que emerge da obra de Kawabata (1899 – 1972) ou Mishima (1925 – 1970), o autor de Homens sem mulheres não esconde as suas referências do lado de cá do globo, entretanto, transparece também a confluência entre o Japão antigo – aquele defendido com sarcasmo por Tanizaki – e o novo, que se anuncia num simples abrir de cortinas.
E O Assassinato do Comendador sabe espreitar por esses dois caminhos – os mesmos perseguidos por Kazuo Ishiguro, Nobel em 2017, e que fez de O Artista do Mundo Flutuante sua ode ao saudosismo. Ainda que o protagonista-narrador de Murakami não seja um homem amealhado como o de Ishiguro, vive uma crise que se intensifica ao passo que o inverossímil ganha vida e corpo, se tornando parte indissociável. Assim, o absurdo – que em Kafka (1883 – 1924) e Beckett (1906 – 1989) revelam uma loucura subjacente – tem nuances de certa normalidade como em 1Q84.
Mais uma vez, como um bom músico de jazz, Murakami perpetua uma sequência de variações sobre o mesmo tema, mas não perde a linha do grande ficcionista que é e não deixa de convidar ao leitor para uma grande viagem entre o concreto e o abstrato e seus vagos contornos e conceitos.
O ASSASSINATO DO COMENDADOR | Haruki Murakami
Editora: Alfaguara;
Tradução: Rita Kohl;
Tamanho: 2 volumes;
Lançamento: Outubro, 2020 (kit com 2 volumes).