Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino nos conta que Borges relacionou literatura com a própria percepção da realidade. Em primeiro lugar, a literatura aparecia como um mundo construído e gerenciado pelo intelecto. Em segundo, a realidade só existiria quando registrada pela palavra escrita, que se torna o começo e o fim da realidade.
Nos explica Calvino que “origem, porque se torna o equivalente de um acontecimento que de outra maneira ficaria como não tendo ocorrido; como fim, porque para Borges a palavra escrita que conta é aquela que tem um forte impacto sobre a imaginação, enquanto figura emblemática ou conceitual, feita para ser lembrada e reconhecida em qualquer aparição passada ou futura”.
George Steiner chamava essa visão de mundo de “antimundo”, já que a realidade passava a ser moldada à sua maneira. Dessa forma, Borges cria uma metáfora para a existência que permite a reorganização de elementos da realidade e a formação de outros mundos. Por isso, Borges resenha livros que não foram escritos, dialoga com pesquisadores que nunca existiram.
Esse universo borgeano, organizado tal qual uma biblioteca, “abrange todos os livros, não só os que já foram escritos, mas cada página de cada tomo que virá a ser escrito e, o que importa ainda mais, que poderia vir a ser escrito”, da mesma forma que comporta “não só todas as línguas, mas também as línguas que desapareceram ou ainda estão por surgir”, de acordo com George Steiner.
Nada disso é novidade, já que falei de como essa visão construía seus universos fantásticos, e, consequentemente, influenciava a Literatura Fantástica como um todo, nesta série de quatro textos. Além da Literatura Fantástica, Borges também se relacionou intensamente com a Literatura Policial.
Borges elogiou a importância de Edgar Allan Poe para a literatura em diversos ensaios, escreveu, resenhou e organizou coletâneas de contos policiais. Segundo artigo de Júlio Pimentel Pinto, publicado em 2011 no periódico acadêmico “Variaciones Borges”, e agora no livro A Pista & A Razão, lançado pela E-Galáxias neste ano, Borges escrevia seus contos policiais de acordo com as reflexões de Poe e Chesterton. Neste momento, vamos nos debruçar no duelo entre leitor e escritor que emerge das narrativas policiais. Chesterton dizia que, diferente de narrativas realistas, o leitor do policial não pergunta porque um determinado personagem fez tal ação, mas questiona-se porque o autor achou importante que esses elementos acontecessem.
No destrinchar teórico de Chesterton, o conto policial aparece como algo lógico, construído meticulosamente – uma “ficção fictícia” e não uma “ficção realística”. Visão que, como vimos acima, Borges adotava para sua literatura.
Borges relacionou literatura com a própria percepção da realidade. Em primeiro lugar, a literatura aparecia como um mundo construído e gerenciado pelo intelecto. Em segundo, a realidade só existiria quando registrada pela palavra escrita, que se torna o começo e o fim da realidade.
De acordo com Júlio Pimentel, “a marca mais notável do gênero policial na obra individual de Borges – e por ele mesmo admitida – é ‘La muerte y la brújula’ [A morte e a bússola]’. Lá estão os elementos básicos de um conto policial”. Neste conto acompanhamos a investigação o detetive Lönnrot e seu assistente Treviranus em busca do assassino Scharlach.
Logo no primeiro parágrafo, descobrimos parte do desenlace da narrativa e, apesar da tradicionalidade que Borges segue, dois termos no texto sugere um contraponto com as estruturas. O investigador tem uma perspicácia “temerária”, menos ligada à parte concreta da investigação, enquanto o crime solucionado é “rigorosamente estranho”.
Ao longo do conto, vemos a investigação de Lönnrot se desenvolver cada vez mais longe da realidade. Ao chegar na cena do primeiro crime, ele encontra na impressora pistas sobre o nome de Deus e uma vítima que escrevia livros de teologia.
Dessa situação, vemos desenrolar o caminho que o detetive que vai tomar: enquanto seu assistente tece hipóteses baseadas na realidade concreta, Lönnrot o acusa de criar “hipóteses desinteressantes” e passa a se debruçar nos mistérios religiosos que envolvem a descoberta do nome de Deus.
As condições encontradas por Lönnrot são controversas: se debruça nos livros e faz uma investigação exclusivamente intelectual, desprezando as condições dos crimes. Ainda assim, como nos conta Júlio, “todos os personagens do conto cumprem seus papéis e prosseguem em seus itinerários: Lönnrot avança galhardamente em seus estudos hebraicos; Treviranus continua a investigar, com trabalho braçal, os crimes que se sucedem; (…) o criminoso volta a matar e deixa pistas cada vez mais coerentes com a visão do detetive. Como em toda narrativa policial, as histórias paralelas (…) confluem para o desfecho elucidativo e para o prevalecimento da razão analítica do detetive, que decifra o enigma e o expõe aos demais personagens e leitores”.
Tal conclusão, já controversa e exposta no primeiro parágrafo da narrativa, leva a um diálogo final entre Lönnrot e Scharlach – e é essa relação estabelecida aqui que nos interessa. Da mesma forma que outras narrativas policiais, como Sherlock e Moriarty, o detetive e o assassino são personagens espelhados.
Além disso, as contrariedades presentes no primeiro parágrafo e expostas acima se tornam mais intensas. Neste momento, percebemos que o raciocínio dos dois é espelhados. O conto é uma caça do assassino ao detetive, que já sabia de sua morte, e é o próprio assassino quem explica o crime, tomando o lugar do detetive.
Se lembrarmos que, para Borges, a realidade existe de acordo com a linguagem, e do papel ativo do leitor em uma narrativa policial, conforme citado acima, a própria história de Lönnrot pode ser vista como uma reflexão sobre os tipos de leitura ativa. Entendamos:
Lönnrot só acredita naquilo que lê e é nisso que aposta Scharlach. Tratando do crime como uma narrativa, Ricardo Piglia diz que Scharlach “lê para Lönnrot e contra Lönnrot, mas também com ele”. Enquanto Lönnrot, em sua “perspicácia temerária”, perdia o chão da realidade e tentava escrever a história dos crimes, o assassino escrevia a história da investigação. O desfecho imprevisto da trama mostra como o detetive não era o único e nem o melhor leitor.
Na unificação da história do crime com a história da investigação, o detetive buscou a maneira mais fiel e rígida de ler o texto encontrado nos livros e nas letras do nome de Deus. O assassino, de maneira livre, interpretou e adaptou o texto recebido da maneira que lhe convinha, permitindo a criação da armadilha para Lönnrot.