Quando penso em viagem no tempo de volta para o passado, em geral o que me vem à mente é o Marty McFly e Dr. Emmett Brown aprontando altas confusões na Sessão da Tarde. Fora isso, também costumo imaginar alguém tentando mudar algo e gerando altas cagadas na linha temporal, tipo o filme Efeito Borboleta ou a série Além da Imaginação.
O que há em comum nessa minha pobre bagagem cultural pop é que, em praticamente todas essas histórias, o que temos como preocupação maior dos personagens [highlight color=”yellow”]é a tentativa de consertar algum erro que eles próprios cometerem fazendo esta viagem[/highlight], assim como dar uma melhorada em uma coisa ou outra, garantindo que o futuro seja como ela já era lá no presente, antes de eles voltarem para o passado, com exceção de poucas modificações. Além disso, [highlight color=”yellow”]todas as histórias são protagonizadas por homens brancos[/highlight], assim como eu.
Tá e daí?
E daí que, em meio à minha vastíssima ignorância, nunca havia passado pela minha cabeça como poderia ser uma história de viagem no tempo protagonizada por uma mulher negra. Mais do que isso: uma história de viagem no tempo com uma mulher negra que vai parar não nos EUA racista dos anos 50, ou nos EUA racista dos anos 30, mas sim no sul dos EUA do século XIX, em plena escravidão nos anos pré-Guerra Civil, no centro da porra toda.
Pro McFly, seria molezinha, talvez até estranhassem aquele boné ridículo, mas ele não receberia chibatadas por isso. E aí, como uma mulher negra dos dias de hoje sobreviveria naquele inferno? A escritora Octavia E. Butler, no romance Kindred – Laços de Sangue, lançado pela editora Morro Branco, com tradução de Carolina Caires Coelho, nos responde essa pergunta de uma maneira bastante brutal.
Na história, conhecemos Dana e seu marido, ela negra e ele branco, fato que é bem relevante para o contexto da narrativa, que acabaram de se mudar para um novo apartamento, estão arrumando suas coisas quando, do nada, Dana começar a ficar tonta, meio que desmaia e quando recobra a consciência já não está mais no apê, mas sim numa floresta, próxima a um rio onde um garotinho branco está se afogando. Ela o salva, depois percebe que não está mais nos EUA dos 70 (período em que o livro foi escrito) e também descobre que há uma forte relação histórica entre eles.
A partir daí, a personagem começará a ser arrastada para o passado sempre que esse garoto estiver em uma situação de perigo e voltará para o presente sempre que a sua própria vida estiver em risco. Enquanto horas, dias ou meses se passam lá no passado, aqui no presente se passaram poucos minutos.
Neste ir e vir a personagem tenta usar todo o seu conhecimento moderno e passa a bolar estratégias de sobrevivência, afinal, ela nunca sabe quanto tempo ficará presa no passado, mas nada disso impede que ela sinta na pele, das maneiras mais horríveis e perturbadoras, o que é a vida de uma escrava.
Conhecida como a ‘Grande Dama da Ficção Científica’, Octavia E. Butler nunca tinha sido publicada no Brasil.
Conhecida como a “Grande Dama da Ficção Científica”, Octavia E. Butler nunca tinha sido publicada no Brasil. Essa demora toda me pareceu inexplicável quando percebi que o livro é fabuloso e, com quase 40 anos, não envelheceu nadinha.
A prosa de Butler não é tão elaborada quanto a de Margareth Atwood (O Conto da Aia), por exemplo, já que ela opta por uma linguagem e uma estrutura narrativa mais direta, que proporciona uma leitura bastante fluída, mas que [highlight color=”yellow”]jamais resvala na superficialidade[/highlight]. A autora mantém um ótimo controle das linhas temporais e em nenhum momento a história fica confusa como às vezes pode acontecer neste tipo de narrativa.
Trata-se de uma ficção científica inteligente, que consegue entreter com suas reviravoltas e momentos de tensão, ao mesmo tempo em que discute questões extremamente relevantes e atuais. É um livro bastante acessível, podendo ser até mesmo uma boa porta de entrada para quem não está familiarizado com o gênero.
A despeito da fluidez da leitura, a temática, como não poderia deixar de ser, é bastante pesada. Na primeira cena do livro já temos um braço sendo decepado, para você ter uma ideia. [highlight color=”yellow”]Butler não é do tipo que poupa personagem[/highlight] e ela criou um vilão que entra fácil em qualquer lista de pessoas mais odiosas da ficção (em algum lugar ali perto do Joffrey, de Game of Thrones). A forma como esse personagem vai ganhando mais contornos, mais contradições, etc, é um troço de fazer você querer arrancar as páginas do livro de tanta raiva daquelas atitudes horríveis.
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Talvez o que haja de mais brilhante no livro seja a maneira como o denso desenvolvimento psicológico dos personagens faz eco na atualidade, explorando comportamentos ainda bastante presentes no nosso dia a dia, repleto de racismo velado e explícito. Neste sentido, é um tanto perturbador ver um personagem completamente repulsivo do século XIX falando insanidades que no fundo não estranharíamos se estivessem saindo da boca de um deputado candidato à presidência em pleno século XXI.
Ao mesmo tempo que nos faz relembrar de um passado vergonhoso e dolorido, algo que jamais poderá ser esquecido, [highlight color=”yellow”]Butler nos faz perceber que o presente também não é necessariamente um lugar em que a mulher negra estaria a salvo.[/highlight] Aliás, em qual tempo ela estaria? O próprio fato de o retorno ao presente se dar, não por uma máquina supermoderna, mas sim por meio da dor da personagem, da sua quase morte, nos permite vislumbrar a dimensão do que a autora pretende discutir. Trata-se de reconhecer que uma nação foi erguida sobre uma terra encharcada de sangue escravo e que agora, esta mesma nação, prefere ignorar do que são feitas suas próprias raízes.
Quando um livro tira o seu chão, quando ele chacoalha o seu mundo e te faz pensar em coisas que você nunca havia pensado, é um sinal de que, de alguma forma, aquela foi uma leitura importante, pois ela te modificou. Não falo sobre se tornar uma pessoa melhor ou qualquer besteira do tipo, falo sobre necessidade de reconhecer limitações e aproveitar a possibilidade de enxergar o mundo sob ângulos diferentes. Eu nunca tinha pensado em histórias de ficção científica como essa, por isso sou muito grato à Sra. Butler, pois agora elas fazem parte do meu imaginário.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]KINDRED | Octavia E. Butler
Editora: Morro Branco;
Tradução: Carolina Caires Coelho;
Quanto: R$ 23,90 (432 págs.);
Lançamento: Outubro, 2017.
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