Entre os anos 1960 e 1980, nossos hermanos argentinos foram acometidos pelo mesmo mal que assolou o Brasil, o Chile, o Uruguai e o Paraguai: a instauração da ditadura militar. Como seus outros vizinhos, a Argentina foi levada à bancarrota pelos generais e só conseguiria se reerguer no início da década de 1990. Em Os Fantasmas, César Aira – um dos autores argentinos mais profícuos e menos publicados no Brasil – descreve a reconstrução do país em uma fábula exata e cortante.
Narrada em um único dia, 31 de dezembro de um ano não revelado, a novela se debruça sobre um prédio em construção, seus futuros moradores, arquitetos, paisagistas, os pedreiros chilenos e, obviamente, as almas penadas que também habitam aquele espaço – que, não por acaso, só podem ser vistos pelos operários e pelas crianças. Em um livro-síntese da redemocratização da Argentina – mas que, em alguma medida, cai como uma luva para história tupiniquim –, Aira explora os conflitos sociais, os medos e as esperanças que engendram uma perigosa armadilha política.
Como no conto “O Bloqueio”, de Murilo Rubião (1916 – 1991), os moradores são assaltados por uma estranheza invisível que espreita na soleira da porta. Não é difícil imaginar o edifício como uma metáfora da própria Argentina, àquela altura se recuperando do baque político e econômico deixado pelo exército, enquanto os ocupantes representam a classe média em ascensão – e que se deleita com as possíveis benesses que novos ventos prometem. Em simultâneo, Aira escancara o racha com o Chile, que serviu de abastecedor para os navios ingleses durante a Guerra das Malvinas (1982), e, claro, a memória dos mortos e exilados pela ditadura, justamente, na figura dos fantasmas.
Entre o cômico e o assombroso, Os Fantasmas revela a crueza e as idiossincrasias da natureza humana, explora os muitos lados de uma perspectiva e tenta criar um retrato sólido de um país. Tal a inquilina do relato “A casa de açúcar”, de Silvina Ocampo (1903 – 1993), César Aira emprega certa mística sobre os moradores como se houvesse um pacto de sangue entre a estrutura de concreto e o homem.
Oscilando entre um tom áspero e a ironia, César Aira se mostra não apenas um escritor inequívoco, mas um retratista preciso.
Conexão
Existe uma espécie de deflagração dos sentidos, uma conexão arbitrária entre o real e o fantástico. Nesses meandros, como que escondido entre frestas, parece habitar a verdade e que só está perceptível num emparelhamento narrativo, capaz de alinhar crítica social, humor, melancolia e ensaio.
Sob esse prisma, Aira usa a sua sátira – porque Os Fantasmas não deixa de ser uma grande sátira sobre as inúmeras antíteses que formam um povo – para escrever sobre a própria literatura e o fazer artístico como ferramentas de alijamento e imersão. Em certo ponto, a arquitetura também abandona seu caráter utilitarista para assumir o papel estético e segregador – como também fez J. G. Ballard (1930 – 2009) em High rise.
Essas múltiplas camadas fazem d’Os Fantasmas um texto que não parece completar 30 anos em 2020, mas se revela um oráculo dos anos pós-bolsonarismo. A rapsódia de Aira é um exemplo de uma literatura afetiva e contemplativa, uma percepção aguçada, inteligente e visceral de uma história que parece se repetir de tempos em tempos.
Oscilando entre um tom áspero e a ironia, César Aira se mostra não apenas um escritor inequívoco, mas um retratista preciso. Em suas mãos, a História, que está sempre sob a tensão do tempo e do poder, ganha contornos míticos como se houvesse uma necessidade premente de encontrar uma explicação que está apagada ou escondida – como o nome daqueles que foram jogados ao mar durante os anos militaristas portenhos.
OS FANTASMAS | César Aira
Editora: Rocco;
Tradução: Joca Wolff;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.