Neste dia 14 de março, a escritora Carolina Maria de Jesus completaria 110 anos. Falecida em 1977, a mineira é destacada como um dos grandes nomes da literatura negra brasileira, sobretudo por conta de sua obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, em que narra a sua vida na favela do Canindé, em São Paulo.
Com apenas dois anos de estudo formal, Carolina tornou-se um símbolo da literatura enquanto campo de existência e como forma de escapar da invisibilidade social. 47 anos depois de sua morte, sua obra segue sendo revisitada e estudada. A editora Companhia das Letras, por exemplo, lançou em 2020 o projeto “Cadernos de Carolina“, que visa a edição de manuscritos inéditos da escritora, entre escritos memorialísticos, romances, poesia, música, teatro e narrativas curtas. Entre as obras já lançadas, estão o romance O Escravo. Além disso, dois novos projetos devem rememorar a sua obra e introduzi-la a novos leitores: um livro em quadrinhos feito apenas por mulheres negras e um site elaborado pelo Instituto Moreira Salles.
Por que revisitar Carolina Maria de Jesus?
Para a historiadora e escritora Jessica Stori, autora da dissertação de mestrado “Quando infiltrei na literatura eu não previa o pranto: a memória e a escrita de Carolina Maria de Jesus”, a escritora mineira tem uma presença incontornável e transformadora na literatura brasileira desde os anos 1960. “Não apenas pelas denúncias ou pela infiltração literária, mas pela inventividade artística que deixou registrada em seus trabalhos com a memória, com a poesia e com a ficção”, explica.
Jessica lembra que Carolina procurou por editoras para publicar seus livros desde que chegou a São Paulo, antes que fosse descoberta por Audálio Dantas. Sua ligação com a literatura vem da infância em Sacramento, ao lado do avô, Benedito, conhecido como Sócrates Africano. “Para além de tudo que ainda vamos saber sobre ela, em seu aniversário, gosto de pensar na sua devoção pela escrita, a relação que manteve com o criar através da caneta, dos cadernos e da máquina de escrever. Todos personagens em seus livros. Pelo sonho e pelo ofício, Carolina nos coloca diante da manutenção de sua escolha: escrever, ser uma escritora: ‘crêio que, não poderei viver sem escrever'”, comenta.
A historiadora vê que há hoje uma visão oxigenada sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, para além dos olhares do passado. “Hoje, graças a uma crítica antirracista, estamos conhecendo Carolina para além de uma recepção viciada em estereótipos, estamos conhecendo Carolina por si mesma. A estrutura não foi rompida, mas Carolina continua a perturbar os espaços hegemônicos e canônicos da literatura brasileira, tornando-se uma das principais autoras da nossa história”, conclui.
Conheça a seguir dois projetos que estão sendo lançados em celebração aos 110 anos de Carolina Maria de Jesus.
Nova versão em quadrinhos de ‘Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada’
Para marcar os 110 anos de Carolina, a editora Ática lança uma nova versão em quadrinhos de Quarto de Despejo. Trata-se de um projeto liderado por mulheres negras: Triscila Oliveira assina o roteiro, as ilustrações são de Vanessa Ferreira e as artes finais, de Hely de Brito e Emanuelly Araujo.
Com apenas dois anos de estudo formal, Carolina tornou-se um símbolo da literatura enquanto campo de existência e como forma de escapar da invisibilidade social.
“Com essa HQ, queremos que a obra de Carolina Maria de Jesus se torne conhecida o quanto antes entre os jovens. E trouxemos somente mulheres negras para esse projeto, a fim de seguir de uma forma representativa com o legado que Carolina nos deixou”, afirma Laura Vecchioli do Prado, coordenadora do editorial de literatura da SOMOS Educação, companhia idealizadora da iniciativa.
O livro tem 90 páginas ilustradas e já está disponível para venda. Em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus retrata a sua rotina como catadora de papel na favela do Canindé, fazendo considerações sobre temas diversos, como gênero, raça e desigualdade social.
Em um texto no fim da obra, as autoras analisam como suas trajetórias têm proximidade com a da escritora mineira. A ilustradora Vanessa Ferreira contou, em entrevista à Agência Brasil: “eu, apesar de crescer em um barraco e vir de uma situação muito pobre, tive uma mãe que falava que era muito importante estudar. Minha mãe zelou por isso na minha vida”.
Por outro lado, ela nem imaginava ser possível viver como ilustradora. “Não havia nem essa palavra, na verdade. Nem à faculdade a gente tinha acesso. Ainda mais uma pessoa preta. Ganhar dinheiro com arte? Nunca”. Tal como Carolina Maria de Jesus – que, embora tenha conhecido a fama, nunca teve a vida ganha – Vanessa conseguiu trilhar o rumo dos seus sonhos.
Website Carolina Maria de Jesus
No aniversário de Carolina, o Instituto Moreira Salles lança um site especial sobre a vida e a obra da escritora. A proposta é reunir uma grande quantidade de informações sobre a sua história, incluindo a construção de sua principal obra, Quarto de Despejo, que trouxe repercussão mundial ao seu trabalho na década de 1960.
A concepção do projeto é da pesquisadora Fernanda Miranda, que participou também da produção da exposição Carolina Maria de Jesus, um Brasil para os brasileiros, exibida no IMS Paulista (2021) e no Museu de Arte do Rio – MAR (2023). “Tem uma proposta central neste site, que é o de ser um ponto de encontro, onde admiradores, estudiosos, leitores e todas as pessoas que se sentem tocadas por Carolina poderão compartilhar aspectos preciosos de sua vida e obra em movimento”, explica.
O website tem quatro seções – Biografia, Obras, Arquivo Vivo e Encontros – e é ricamente ilustrado com reportagens, fotografias e reprodução de seus manuscritos. Há ainda destaque para seus livros mais conhecidos: Quarto de despejo, Casa de alvenaria e Diário de Bitita ganham cada um ambiente próprio.
Os visitantes também podem ler o primeiro de dois cadernos do manuscrito Um Brasil para os brasileiros, sob a guarda do IMS. A obra foi publicada primeiramente na França e depois traduzido para o português com o título Diário de Bitita, com diferenças importantes. Ainda é possível escutar o disco Quarto de despejo, lançado pela RCA Victor em 1960, além de acessar depoimentos sobre a escritora.
“O site é um projeto em andamento, vai se fazendo com o tempo, muito conteúdo ainda vai ser produzido”, explica Fernanda, que tem expectativa nos materiais e depoimentos que ainda serão colhidos, com o objetivo de constituir arquivos de memória vivos no presente.
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