Existe um tema que percorre boa parte da minha produção crítica recente: a banalidade do mal. O termo, que por ora parece ter se tornado um lugar comum no meio de um genocídio orquestrado por ideologia rasa e farsante, ganhou ares de uma normalidade acachapante. Chega a ser difícil desvencilhá-lo da realidade. A pergunta que fica, porém, é: como a ideia de Hannah Arendt opera na literatura contemporânea, sobretudo a tupiniquim?
Antes, porém, é preciso estabelecer o limite entre a banalidade do mal e a violência gratuita. O primeiro reside no mal praticado socialmente sem a necessária reflexão diante da ação. É uma execução burocrática, que busca na desumanização a redução do sujeito a uma espécie de nulidade. Quando um chefe de estado não chora 400 mil vítimas de uma pandemia – que ele próprio ajudou a agravar – registram traços dessa desumanização. A violência gratuita se dá na perspectiva da estética e do simbólico, acontece como um traço deliberado, com um pensamento sádico de prejuízo. São as torturas da ditadura, por exemplo.
Não de hoje – e como hoje entendemos o bolsonarismo – que esse conceito, a banalidade do mal, se desdobra na nossa literatura. Em alguma medida, já estava presente nos contos de Rubem Fonseca, nos romances de Marçal Aquino e de Paulo Lins. A violência urbana brasileira carrega em seu DNA não somente o signo da desigualdade social como também a banalidade do mal. São irmãos que andam de mãos dadas pelas vielas e pelas casas dos bacanas. O verniz da société é que difere ambas as situações.
Talvez seja esse o grande leitmotif a partir do regime militar. Se antes havia um regionalismo interessado em encontrar as raízes do Brasil, quando da tomada do poder pelos generais houve uma inversão e as cidades – principalmente São Paulo e Rio – passavam a simbolizar a representação de toda a sociedade brasileira, como se fosse possível encontrar ali não apenas as etnias e povos que deram corpo e forma ao país, mas também um catálogo de erros estruturais e sociais. É impossível ler O Cobrador, de Fonseca, e não pensar na cadeia de eventos que leva um sujeito a, deliberadamente, abandonar a sua natureza pacífica e requerer aquilo que acha lhe ser de direito.
É uma leitura interessante de mundo, ainda que devastadora. Se há algo que deveria ser seu e não lhe foi dado, por que não tomá-lo à força? É, nas palavras de Cristiane Sucheski Contin e Ângela Maria Rubel Fanini, “a utopia de um marginal em busca de uma revolução social”. Essa tal revolução é um sentimento desesperado de desamparo e cansaço. Desamparo pela solidão social à qual são impostos os merdunchos – aí vem João Antônio que soube muito bem mimetizar a vida da marginalia em seus livros – e cansaço através da exaustão, da consciência da impossibilidade de romper pacificamente com uma condição pré-fabricada. É a crise e a violência como projetos, como ferramentas de paralisação e estancamento do desenvolvimento. Desordem e regresso.
Obviamente, reduzir essa visão às camadas periféricas é um sintoma do olhar estereotipado e viciado. Bernardo Carvalho, que sempre explorou certa característica animalesca em seus personagens, fez de Reprodução, romance publicado em 2013, um estudo antecipado do pensamento extremo e radical que surgiria ainda naquele ano com as Jornadas de Junho. Na verdade, o livro foi publicado três meses depois das movimentações que tomaram o Brasil, mas ainda assim, no calor da situação, pode ler de forma bastante intensa o renascimento do pensamento conservador travestido de revolta da classe média. Foi, à paisana, uma marcha pela tradição, família e propriedade.
Anos depois, em Simpatia pelo demônio, o autor elevaria a potência dessa arqueologia da violência como expressão simbólica, algo que Joca Reiners Terron encaixaria como segundo plano de A morte e o meteoro, que à guisa do holocausto, destitui do individuo o seu caráter humano. “Você estuda para enfrentar a guerra, aprende táticas para combater a violência”, disse Carvalho em uma entrevista ao Suplemento Pernambuco, “mas nada disso é suficiente para combater uma violência interna, uma crise interna da qual ele está tentando fugir desde sempre e que acaba estourando na meia idade.”
É a sensação que encontramos nos dois livros mais recentes de Milton Hatoum, A Noite mais escura e Ponto de fuga, ambos parte de uma trilogia que investiga o golpe militar e suas consequências. O escritor manauara, por sinal, tem sido uma das vozes mais atuantes contra o governo de Jair Bolsonaro, nomeando os bois que continuam a perpetuar o legado militarista e vendilhão de 1964.
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Soa um tanto óbvio dizer que a banalidade do mal existe antes que o conceito fosse criado, assim como é igualmente de uma obviedade estarrecedora que já estivesse presente na literatura brasileira e universal há anos – Kafka e Euclides da Cunha que o digam. Em aspecto formal, o mal e a maldade – que aqui chega a ocupar muito mais o posto de advérbio que substantivo – é o cerne da paranoia de Bentinho – que se dá mal ao escolher unicamente Capitu sem quaisquer concessões –, mas, a despeito de sua condição, é uma maldade o seu destino.
Ao longo da história da nossa literatura, são inúmeros os casos que se repetem como imolação. O mal se torna banal, e fantástico, quando ninguém morre em Antares; quando Policarpo Quaresma é tido como louco ou no exato instante em que Clara dos Anjos é jogada na lama. São muitas as metáforas que percorrem, com tamanha antecedência, o conceito de Hannah Arendt.
Essa base histórica invisível talvez explique a profusão de romances, contos e poesias que exalem o nosso tema. Se em algumas obras essa operação acontece a olhos vistos – como nos dramas urbanos de Nelson Rodrigues ou Cristovão Tezza, ou nas elipses existenciais dos millenials da geração de Daniel Galera e Michel Laub. Até mesmo Torto arado, o grande fenômeno literário dos últimos dez anos, esbarra no tema.
Quando o básico é retirado da vista, oferece lugar ao instinto selvagem e à desumanização. E, em certa medida, isso não é crise, é projeto, um projeto que integra a história do país desde que os portugueses chegaram.
Na obra de Itamar Vieira Júnior, a banalidade do mal se assoma na posição da violência estrutural que percorre toda a narrativa, que explora as nuances do racismo e a desconstrução da identidade. Guardada as devidas proporções, existe um paralelismo entre a história das duas irmãs sertanejas – como arquétipo de todo um povo – e o holocausto judaico. É um caminho que diverge da brutalidade como experiência estética, mas que a explora com uma singularidade social.
Em geral, quando tratamos do tema dentro da literatura brasileira, atravessamos um caminho tortuoso. Não porque faltem exemplos, e sim pelo contrário. São muitos e tantos que enumerá-los parece uma tarefa a la Sísifo. Elvira Vigna, em seu livro Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, parece entender a realidade da decomposição de corpos ainda vivos. A obra de Vigna, de forma geral, é um grande ensaio sobre o desentendimento humano, elaborada através de abismos. Ainda assim, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas soa como um sino a tocar sobre os todos os elementos que desenraízam a matéria social.
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É, como já disse, praticamente impossível exumar toda a literatura brasileira pós-ditadura militar. É um sentimento constante de incompletude e impotência que percorre qualquer tentativa de se criar trilhas percorríveis. A banalidade do mal, como o luto, é uma sensação rasteira, que chega de ímpeto e envolve a vítima em um processo de sufocamento, que exaure e impede o renascimento.
Lembro da polêmica de quando Marcos Peres publicou O Evangelho segundo Hitler, na verdade uma grande homenagem a Borges, e a leviandade com que se tratava a capa do livro. Naquela época, sete anos atrás para ser mais exato, já era costume ler a manchete e ignorar a notícia. No romance de Peres, a conexão entre Alemanha e América Latina se canaliza de uma maneira criativa e, incrivelmente, inovadora, mas poucos críticos atentaram à análise que o livro fazia sobre as vozes conservadoras que se erguiam. É interessante como as pessoas se chocam com certas coisas, no sentido do acovardamento, mas não se chocam com o que é verdadeiramente chocante.
Aquele retrato que Peres traçou em seu début era, como fez há pouco Davi Boaventura em 17 de abril, um prenuncio do abismo. Talvez inconscientemente, talvez não, O Evangelho segundo Hitler é uma obra sobre a barbárie – como são muitas das que citei – e já antecipava aquilo que Terron e Bernardo Carvalho fariam mais tarde, que o autor de Nove noites já tenha examinado o assunto em muitos dos seus livros, como Medo de sabe e As Iniciais.
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No conto “Latinoamérica”, o escritor curitibano Carlos Machado reflete sobre a posição do Brasil frente ao hermanos de todo o continente. Ainda que esse tema perpasse toda a obra do autor, e aí já podia identificar esse mote na novela Balada de uma retina latino-americana – um road book, uma espécie de livro de fotografia sem imagens –, nesse breve relato existe um quê de confluência de resumo, daquilo que, por exemplo, Borges fez com A Biblioteca de Babel.
Desse ponto podemos pensar no assassinato em massa da Guerra do Paraguai, da relação imperialista do Brasil com os demais vizinhos e do sentimento de isolamento e falta de empatia que, culturalmente, se nutre com a Argentina, a Venezuela, a Colômbia, o Paraguai. Talvez, com o Uruguai e o Chile enxergamos algum contato lateral, que não respingue esse preconceito banal.
É uma relação parecida à qual encontramos nos livros A Resistência e A Ocupação, de Julián Fuks. No primeiro, uma síntese, como a de Machado, sobre as contradições tupiniquins em um olhar amplo, para fora, enquanto o segundo faz o mesmo movimento, entretanto, olhando para dentro. São obras cujo sentido se dá no eixo humano e no espaço urbano, e se cruzam por meio das indistinções e das percepções agudas sobre o homem nas cidades.
A banalidade do mal, e sua relação com a violência e a desigualdade, é um elemento intrínseco à literatura brasileira, mas ainda não foi assumido como tal. Entre os lençóis de uma produção preocupada em relevar ao mundo as mazelas de um povo heroico, que está silenciado porque lhe faltam segurança, educação e comida na mesa.
Quando o básico é retirado da vista, oferece lugar ao instinto selvagem e à desumanização. E, em certa medida, isso não é crise, é projeto, um projeto que integra a história do país desde que os portugueses chegaram – num dia de chuva, como diria Oswald de Andrade – e começaram a construir a lenda de aqui é um lugar em que se plantando tudo dá. E não estavam errados, mas, infelizmente, ao que tudo indica, foram semeadas ervas daninhas ao invés de flores.