Em algum momento dos anos 2000 definiu-se um conceito de que a música pop deveria ser fundamentalmente dançante, para se ouvir na balada. Isso não é necessariamente um problema, é nesse universo que surgem discos como Body Language, da Kylie Minogue e Confessions on a Dance Floor, da Madonna. Porém, com o passar dos anos, os fãs de pop tornaram-se quase xiitas, cobrando sempre das suas divas pop os tais hits “farofa”, isto é, aquelas faixas que nem são realmente boas, mas são perfeitas para se dançar. Limitador, esse arquétipo quase fez desaparecer as baladas mais românticas das paradas musicais e nos fez conviver com remixes assustadores da Adele, por exemplo.
2016, porém, trouxe uma leva de trabalhos que flertam com outros caminhos, provando que a fórmula de músicas apenas focadas na pista de dança não é o ideal para todas as cantoras pop. O que vimos no último ano foi um flerte cada vez maior entre o mainstream e a música alternativa: Beyoncé se unindo a James Blake, Jack White e Ezra Koening (do Vampire Weekend); Rihanna fazendo versão de Tame Impala; Lady GaGa trabalhando ao lado de Josh Homme, Father John Misty e Beck; Charli XCX sendo produzida pelo pessoal da PC Music; Solange fazendo disco conceitual com o Dev Hynes; entre outros encontros inesperados.
Esse tipo de interconexão é natural e algo que historicamente se interpôs a qualquer coisa que possamos chamar de arte pop. Na contramão disso, muitos fãs dessas artistas reagiram de forma negativa, considerando como uma tentativa forçada de elas serem conceituais ou soaram mais inteligentes do que são, quando na visão desse público a música pop não deveria ser complexa ou múltipla. Nesse ponto é hora de retornarmos ao passado e pensarmos como a apropriação e a ressignificação são partes fundamentais da arte pop. Não podemos falar de Roy Lichtenstein ou Andy Wahrol, por exemplo, sem considerar suas releituras e o reposicionamento que eles nos trazem de arquétipos já conhecidos.
![madonna arquétipo música pop](http://www.aescotilha.com.br/wp-content/uploads/2017/01/madonna.png)
Para compreendermos o quanto essas apropriações e interconexões são parte básica da arte pop, especialmente da música, é preciso que voltemos na obra da Madonna (poderíamos aqui escolher n artistas pop das décadas de 1970, 80 e 90, porém, a Madonna é a que melhor resume essa função de “diva pop” multigeracional). Madonna já se reinventou milhões de vezes e já passou por quase todos os gêneros: já foi o arquétipo moderno de Marilyn Monroe; já usou e abusou da sexualidade, já foi country, eletrônica, downtempo; já usou colant rosa pra todo lado e não saiu das paradas musicais.
A apropriação e a ressignificação são partes fundamentais da arte pop.
Em mais de 30 anos de carreira, ela já colaborou/sampleou/se inspirou em gente como Nile Rodgers, Prince, Björk, Aaliyah, Massive Attack, Gábor Szabó, Missy Elliot, M.I.A., ABBA, Pet Shop Boys, entre tantos outros. Aqui eu me limitei apenas aos músicos, porém, qualquer fã de Madonna saberá listar uma gama de inter-relações da obra dela com artistas plásticos, figuras histórias e com o mundo da moda.
Madonna simplesmente questiona o título desse texto: “a música pop se aproxima cada vez mais da música alternativa”? O correto não seria se “reaproxima”? Já que Madonna é só uma prova de que a música pop sempre dialogou com o universo da arte independente, da cultura erudita e de vertentes obtusas ao mercado. É possível ver esse diálogo em inúmeros exemplos:
1) todas as referências clássicas e o universo próprio de Kate Bush não estreitaram o seu status de cantora pop que vende milhões de discos.
2) Grace Jones transformou canções clássicas de Astor Piazzolla e Édith Piaf em sucessos pop em baladas disco.
3) Janet Jackson já sampleou Joni Mitchell e incluiu sobre isso os versos do rapper Q-Tip.
4) Kanye West retorceu “Strange Fruit”, da Billie Holiday, na faixa “Blood on the Leaves”.
A música pop tem, per si, esse caráter de pegar as coisas mais distintas e que soam pouco acessíveis ao público médio e tornar isso palatável, vendável e, até mesmo, dançante, o que não diminui a sua qualidade. Fazer música pop boa é realmente muito difícil, por isso não é de se assustar que os álbuns pop cada vez mais contem com uma lista maior de produtores, autores e samples. Beyoncé reúne uma ficha interminável de pessoas ao seu redor para produzir um disco, coisa que para alguns pode parecer falta de talento, mas que na verdade denota a constante busca da artista por criar esse universo realmente complexo, que dialoga com diferentes espaços e que busca concatená-los em músicas distintas.
2016 foi, portanto, um ano em que muitas cantoras pop buscaram esses caminhos distintos em suas carreiras e isso é maravilhoso, pois traz multiplicidade e complexidade a um gênero que estava se repetindo, capengando, falando sempre com o mesmo público, fechado num universo millennial-que-vai-a-balada-e-quer-imitar-coreografias. Esse respiro é fundamental para que a música pop se reinvente e redescubra o seu potencial de complexidade e qualidade, bem como sua força de dialogar com diferentes nichos.