O que define a vida moderna? Tecnologia? Conectividade? Globalização? Ficar parado no trânsito? Comprar tangerina já descascada no supermercado? Será que ser adulto nessa vida significa liberdade ou significa apenas escolher em quais lutas entrar? A maravilha da vida moderna é a alegria induzida por antidepressivos? Será que a tal tangerina descascada no mercado não é a cara dessa vida moderna que busca praticidade até onde não há sentido? A cabeça vai longe e as metáforas não param. O responsável por descascar essa tangerina da vida atual foi um trio gaúcho chamado Dingo Bells em Maravilhas da Vida Moderna, disco de estreia da banda lançado no começo desse ano.
“Tanta gente buzinando esqueceu de andar / veio ao mundo por engano / eu vim passear” – como em uma versão modernizada do passarinho de Mário Quintana, o Dingo Bells abre seu disco de estreia com “Eu Vim Passear”, uma canção que já dá o tom do que é Maravilhas da Vida Moderna: uma grande obra pop experimental que vem cheia de questões e reflexões sobre a sociedade e a vida de um adulto nos dias atuais.
O trio gaúcho já toca junto há bons anos, mas traz aqui seu primeiro trabalho completo com cara daqueles discos pensados como obra. Da capa à ordem das faixas, tudo foi trabalhado para ressaltar a ideia e os dilemas da vida moderna cantados aqui. Poucas coisas escapam da criatividade do Dingo Bells, da confusão das revistas de saúde que mudam o vilão e o heroi nutricional mensalmente à constatação repetida em duas faixas de que, no fim das contas, somos poeira espacial. “Dinossauros”, pra mim uma das melhores músicas nacionais de 2015 até agora, usa um dinossauro e um astronauta para filosofar sobre a percepção da vida, o universo e tudo mais. Difícil de explicar, mas faz sentido em um contexto que debate temas maiores ao mesmo tempo que toca nas pequenas coisas da vida – como beber água de coco ou sair de casa aos 30.
Às vezes pode parecer melancólico, mas o trio carrega as músicas de groove, guitarras que viajam em solos e toques otimistas que dão um ar esperançoso ao mundo moderno. Há um tom de Clube da Esquina nas composições, algo oitentista em outras canções, uma alegria contagiante em faixas como “Olhos Fechados Pro Azar”. É um disco que empolga em vários momentos ao mesmo tempo em que traz ares reflexivos. Dá pra imaginar tranquilamente um cenário em que o ouvinte coloca o CD no carro e sai dirigindo por horas ouvindo o Dingo Bells.
“Às vezes pode parecer melancólico, mas o trio carrega as músicas de groove, guitarras que viajam em solos e toques otimistas que dão um ar esperançoso ao mundo moderno.”
No entanto, confesso que mesmo com tantas coisas boas é um disco que poucas vezes consegui ouvir do início ao fim. A primeira metade do álbum é irretocável, com músicas como “Maria Certeza” e “Mistério dos 30”, além das que já citei. Da sétima faixa – “Bahia” – pra frente o disco começa a cansar, embora retome o fôlego na serena “Anéis de Saturno” e feche o álbum dignamente com “Todo Nó”, que afirma que “tanto faz se é sorrindo que se desfaz todo nó da garganta”. O Dingo Bells consegue tratar dos dilemas da vida moderna sem soar depressivo, pelo contrário. A situação pode ser triste, mas nada que calma e paciência não resolvam.
Mesmo longe de ser um disco perfeito, para um trabalho de estreia Maravilhas da Vida Moderna é surpreendente. É extremamente maduro e consciente do que quer apresentar, com grandes composições do trio gaúcho.