Pois é, garotas. Interrompemos uma vez mais a nossa programação para falar sobre machismo velado no meio musical. Essa semana, deparamo-nos com uma velha-nova situação de profundo desrespeito com uma mulher, que, consequentemente, desrespeita todas nós mulheres, envolvendo um homem visto como “um cara legal, reconhecido nacionalmente pelo seu sucesso e talento musical, sua ‘sensibilidade’ e suas letras bonitinhas de amor”. Atenção: as características aqui descritas entre várias aspas não refletem (de forma alguma) a visão desta autora sobre o macho em questão.
Para quem não acompanhou a polêmica, na última quarta-feira (16), Clara Corleone, apresentadora de rádio, atriz, escritora e ex-mulher do guitarrista da Apanhador Só, Felipe Zancanaro, publicou um longo relato em seu perfil no Facebook sobre seu casamento de cinco anos com o músico. Na publicação, ela acusa o ex-marido de traições, violência psicológica e violência física. Felipe teria, inclusive, quebrado o dedo dela em uma das discussões. Clara conta que o músico assumiu tê-la traído com mais de quarenta mulheres durante as viagens da banda, e disse que decidiu divulgar o caso porque a banda gravou uma música em seu novo disco, cujo título é um grito de guerra feminista: “Linda, Louca e Livre”. “Foi um tapa na minha cara”, diz ela no texto.
Um dia depois da publicação, a banda anunciou a suspensão de suas atividades por hora, lamentando “profundamente tudo que aconteceu e está acontecendo”. Em nota, disseram, também, que “embora pesarosos, achamos que essa situação pode ser construtiva pra que siga se discutindo questões importantes sobre machismo – que estamos dispostos a rever e modificar cada vez mais em cada um de nós”.
Por último, depois de 48 horas, o guitarrista também se pronunciou em nota divulgada no seu perfil do Facebook, dizendo que cometeu muitos erros em seu relacionamento com Clara, e que seu comportamento infiel causou muito sofrimento e mágoa. A melhor parte foi: “Tem sido uma luta diária e um exercício forte de auto-crítica. Venho buscando desconstruir essas ações e participar cada vez menos das lógicas que acabam perpetuando o machismo na sociedade. Eu sou fruto de uma formação machista. Isso não justifica os meus erros, nem retira a minha responsabilidade sobre meus atos, mas é algo que tenho buscado assumir, enfrentar e mudar”. Puxa vida, que tocante.
A Apanhador Só havia lançado seu mais recente trabalho, o disco Meio Que Tudo É Um, na primeira semana de agosto deste ano e estava vivendo uma boa maré de críticas positivas, com uma agenda de shows marcados por todo o Brasil. Tudo caiu por terra.
Desapontadas, mas não surpresas
Quem integra de alguma maneira o meio musical de qualquer cidade, esse microcosmo artístico da nossa sociedade, sabe que esse pode ser um ambiente ingrato para muitas mulheres. Principalmente porque os homens ainda hoje têm certo domínio nesse espaço social, seja ocupando o papel de músicos das bandas, de produtores, de agitadores culturais, donos de casas de shows e bares, de empresários. A Apanhador Só não foi a primeira banda que viu (e está vendo ainda) sua carreira musical de sucesso se desintegrar por consequência de uma polêmica de relacionamento abusivo envolvendo um de seus integrantes. E provavelmente não será a última. A organização independente Apoie a Cena divulgou uma lista de “bandas brasileiras que você precisa evitar”, não pela qualidade do som, mas pelas atitudes dos integrantes de cada banda (confira aqui).
Quem integra de alguma maneira o meio musical de qualquer cidade, esse microcosmo artístico da nossa sociedade, sabe que esse pode ser um ambiente ingrato para muitas mulheres.
Para exemplificar esse drama, poderia citar aqui qualquer gênero musical como objeto de análise, mas tomo a liberdade de fragmentar a música analisando somente o caso do rock e seus subgêneros que surgiram ao longo das décadas. Desde o início, o rock enquanto estilo musical e estilo de vida foi um espaço que gritava pela transgressão, e transgrediu muito bem. Foram muitas bandeiras levantadas ao longo dos anos, mesmo quando a ideia não era levantar bandeira alguma. Talvez por causa dessa postura transgressora, suja e agressiva pela qual o gênero se sustentou por décadas tenha encoberto, sob muitos panos quentes, centenas de composições com altíssimo teor misógino.
Em outros tempos, de pequenas e desconhecidas bandas dos porões underground até bandas de sucesso estrondoso de público, muitos músicos nunca se importaram em escrever letras chamando suas namoradas de vagabundas, descrevendo “sexo fácil”, vangloriando-se de traições. Faltam dedos para contar os exemplos, mas cá entre nós, todos já cantamos alto muitas dessas canções.
Apesar de ser um ambiente predominantemente masculino, as mulheres sempre estiveram lá, e demoraram um bom tempo para assumir papeis de protagonismo, não apenas de coadjuvantes. Coloco minha mão no fogo por cada mulher do meio musical e tenho certeza que todas, sem exceção, passaram por pelo menos algum tipo de humilhação sexista e assédio. Não conheço particularmente todas as mulheres da história da música, mas conheço mulheres, e todas nós já passamos por episódios de assédio e ou humilhação pela condição de ser mulher. Muitas coisas que gostaríamos de esquecer. Tudo isso em questão é um espelho de uma cultura que minimiza o papel feminino em quase todas as esferas sociais.
A revolução mais explícita e posicionada da história do gênero aconteceu na década de 1990, quando Allison Wolfe, do Bratmobile (EUA), criou uma fanzine feminista batizada de Riot Grrrl, rebelando-se contra alguns dogmas sagrados do rock’n roll. Em especial o de que “garotas não sabem tocar guitarra, baixo ou bateria tão bem quanto os homens”. De título de fanzine à movimento feminista-musical, riot girl virou um relevante braço do punk e hardcore, envolvendo várias artistas e ativistas do movimento feminista e fazendo nascer inúmeras bandas de minas que tinham algo a dizer sobre esse universo hostil para mulheres e (não tão implicitamente) machista. Felizmente, hoje temos exemplos de mulheres impondo-se não só no rock, mas em espaços como o sertanejo e o funk, historicamente tão masculinizados e machistas quanto o rock.
No que tange a situação do guitarrista da Apanhador Só, o buraco pode ser ainda mais embaixo. Os garotos dessa banda são (ou eram) vistos pelos fãs como músicos sensíveis, inteligentes, talentosos, que faziam letras bonitas sobre a vida, que falavam de amor. Após as acusações da ex-mulher de Felipe Zancanaro, observamos tristes e decepcionadas mais uma personificação do neologismo “esquerdo-macho”, uma referência a homens que se mostram publicamente favoráveis a discursos progressistas, de apoio à justiça social e às minorias, mas que em dadas situações demonstram seu sexismo, machismo, homofobia, transfobia, e por aí vai. Como afirmou Mariana Benevides, também colunista n’A Escotilha, “o Apanhador Só enterrou sua carreira num país onde é cada vez mais difícil se projetar nacionalmente”.
Para vocês, machistas, misóginos e hipócritas, apenas duas palavras: não passarão.