Na busca pela ternura, apegamo-nos a qualquer resquício de amor, qualquer fagulha de afeto. Até mesmo aquele embrulho perdido no ventre da antiga cômoda ainda nos salva: a galharufa que nos lembra o motivo da busca pelo palco.
Àqueles que desconhecem os encantos dos tablados, um pequeno objeto inanimado pode parecer pouco, mas o pouco quase sempre é muito diante da vista maltratada pela escassez de poesia que a vida guarda. Ela transborda em nosso inconsciente e ressuscita sorrisos. Possibilita-nos, mesmo que por instantes, aquele arquear de lábios que hoje parece tão distante por conta dos turvos dias que se seguem.
A galharufa é uma geringonça, uma quinquilharia. É algo que, à primeira vista, não tem valor. Na linguagem teatral, representa um pacto, uma espécie de apadrinhamento. É, a grosso modo, uma forma de “consentimento” que todo ator jovem, independente da idade, recebe de outro profissional, já experiente. Aos desavisados, a coisa pode parecer até reacionária, como se estivéssemos tratando de uma espécie de aval, apesar do teatro não tratar de títulos e sim de sentidos. Enfim, não é nada disso!
A galharufa trata de afeto, do princípio ao fim. É uma prova de amor que une duas pessoas. Seres que decidem dividir não só um ofício, mas também um sonho. Em uma arte que trata de ritos, nada mais natural do que entrar de miudinho, pedindo licença a quem é de direito e batendo cabeça àqueles a quem tal obrigação é devida. O teatro é, acima de tudo, morada da divindade, e a galharufa é uma das maneiras que encontramos para eternizar esse sentimento em nosso trabalho.
A galharufa trata de afeto, do princípio ao fim. É uma prova de amor que une duas pessoas. Seres que decidem dividir não só um ofício, mas também um sonho.
Impossível encontrar atores que desconhecem sua existência. Muitos, apesar de negarem, ainda guardam algumas delas como se fossem medalhas. Como se aquele tesouro guardasse em si todos os sonhos dos homens. Não faltam nomes de peso que se renderam ao tal adereço. Paulo Autran, monstro sagrado do teatro, disse certa vez que tinha algumas dessas preciosidades guardadas a sete chaves. O famoso teatrólogo Ziembinski, dizem, entregava uma dessas a cada novo ator de sua companhia. Até mesmo Cacilda Becker, rainha absoluta, prestou reverência ao hábito de dedicar galharufas. E por aí segue a lista: Oscarito, Jardel Filho, Dulcina. Guarnieri, Borguis e Celsos, Ivans e Rodolfos, todas as companhias!
A galharufa é patrimônio cênico. É promessa divina levada a cabo, fruto de uma possibilidade de felicidade guerreira que nos alimenta a alma. Galharufa é também guerra, e acima de tudo, apesar de ser fruto de uma vontade incontrolável, esse presente não se nega.
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Há tempos atrás, um conhecido, um garoto vestido de coragem e com a brasa nos olhos, teve sua galharufa negada. Pediu, como poucos o fazem, a dádiva a um colega de ensaio. Um colega renomado, desses que quando acordam vestem elogios e escovam os dentes com o passado. No fim, essa alma empoeirada e podre, negou-lhe a benção. Somos pobres coitados diante de um teatro que nos nega tudo, inclusive o amor.
Sabendo da história, parei por um instante. Lembrei-me que ando com medo da vida. Medo desses dias que se dilaceram em acordos comerciais, medo de um futuro pautado pelo desemprego. Medo até mesmo do sorriso oco dessa gente que nos lega o inferno. Medo de existir em tempos de desistências. Depois de tanto medo, e com a certeza de que ele nos deixa paralisados quando devemos na verdade arremessar pedras contra o horizonte, dedico enquanto porrada esse texto moderno em forma de galharufa.
Meu amigo, que seus olhos guardem não só o futuro, mas também essas linhas tortas que estilhaçam a má vontade do outro. Seguimos em frente, juntos, cada qual com sua pedra nas mãos e sua saudade dentro do bolso. Toma em tuas mãos minha oferenda. Nela, guardo a certeza da claridade de nosso ofício. Galharufa não é presente, é preceito, e a lição do teatro é o amor, nem que o guardemos no fundo da gaveta.