Amorexia, peça que fica em cartaz até o dia 28 de fevereiro, no Teatro Guairinha, e o Cabaré Voltei, um sarau organizado pela Selvática Ações Artísticas em homenagem aos cem anos do Cabaret Voltaire, apresentado dia 20 de fevereiro, têm o cabaré como importante elemento para se pensar a prática artística – não fosse por isso, talvez, a união desses dois trabalhos não aconteceria, dadas as especificidades de cada um. Curitiba e certa ideia de cabaré são os elementos compartilhados.
O cabaré pode ser compreendido de diversas formas porque, ainda que sua origem seja a Europa do fim do século XIX, ele se desenvolveu de maneiras muito distintas em países como a França, a Alemanha, a Rússia e mais tarde os Estados Unidos e mesmo o Brasil. Desse modo, algumas características são comuns porque trata-se de um espaço em que são apresentados números musicais, teatrais, de variedades e de humor em que, geralmente, pode-se circular, beber e comer durante os espetáculos. Mas não só, o cabaré, em determinadas localidades, foi também um espaço ligado às artes visuais e a literatura, com um caráter reconhecidamente mais intelectual do que em outras partes e foi também um espaço para que as artes circenses fossem desenvolvidas, assim como a ópera. O cabaré é múltiplo.
Um dos mais conhecidos, em Paris, foi o Chat Noir, fundado em 1881, que acabou por originar outros, em vários países. Na Rússia, o Chauve-Souris. Em Paris e em Londres, o Cabaret de Balieff. Em Moscou, o cabaré teve forte relação com o teatro, fazendo com que o próprio Teatro de Arte de Moscou parecesse com um. Em Zurique, especialmente, o Cabaret Voltaire se tornou o centro do que se convencionou chamar “atividades artísticas de vanguarda”, em grande parte por conta do movimento Dadá.
O cabaré alemão, especificamente, nas primeiras décadas do século XX foi importantíssimo para se pensar grande parte da cultura desse século As vanguardas artísticas, hoje históricas, têm nessa geografia e nesses cabarés um reduto, além de tudo, político. Foi em 1935 que os nazistas o proibiram. “Popularidade subversiva” foi o que disseram. O cabaré, nesse momento, além de ser um lugar de arte, se tornou sinônimo para resistência e enfrentamento. Luta. Arte.
Peter Bürger em sua “Teoria da Vanguarda” analisa como, além de uma ruptura na tradição social, os movimentos de vanguarda, estabeleceram uma nova forma de se conceber a própria instituição arte – especialmente o dadaísmo, “o mais radical dentre os movimentos da vanguarda europeia, [que] não exerce mais uma crítica às tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e aos rumos tomados pelo seu desenvolvimento na sociedade burguesa”¹. No centro de uma revolução na instituição arte, encontra-se o cabaré.
No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se famoso por seus cabarés, que imitavam os estabelecimentos franceses, na primeira metade do século XX, com o auge entre os anos 1910 e 1930. Copacabana e a Lapa eram bairros com grande concentração deles– se tornou brasileiro também, o habito de associar o cabaré com a prostituição. Um modo pejorativo e simplista de vê-loé, ainda que, a atividade não seja totalmente alheia aos espaços.
Em todo o mundo, a partir da década de 1960, os cabarés foram lentamente tornando-se “outras” coisas. Os nightclubs, as casas de show e mais uma porção de outros nomes são usados para designar o que hoje minimamente se assemelha aos antigos cabarés.
Nesse sentido, a peça Amorexia, se pretende enquanto um cabaré, em que o principal tema é o amor, fortemente associado à uma suposta imoralidade e/ou impedimento que, no fim, acaba sempre fazendo rir. Um cabaré que articula as ideias de um espaço cujas atrações e finalidades inerentemente são ou serão sexualizadas. Cabe, ainda, uma certa denúncia do que a afetividade se torna por esses dias. Uma apatia característica das relações humanas, uma forma anônima de se relacionar e, no centro de um desejo, as tecnologias imperantes são temas presentes nos textos de Douglas Daronco, quem assina a dramaturgia.
A vida, diferente do que consta por aí, não é um cabaré. Mas deveria.
As referências a um suposto cabaré, histórico, fazem lembrar a forma como os EUA se apropriou dos elementos desse lugar, fazendo imperar uma grandiosidade que torna tudo espetacular. Ainda que várias das músicas enunciadas sejam de antigos cabarés brasileiros, a peça faz alusão visual, aos grande shows estrangeiros. O elenco da montagem é composto por Marvhem Hardware, Marcelina Fialho e Thadeu Peronne, que é também o diretor.
O Cabaré Voltei, no entanto, não é uma peça de teatro, propriamente, mas inspira-se no icônico Cabaret Voltaire para fazer um sarau – tal qual as coisas costumavam funcionar lá em Zurique. O deboche, a relação violenta contra os conservadorismos, a pretensa quebra de uma tradição, são todas coisas que voltam, atualíssimas. O fascismo europeu. O conservadorismo brasileiro. A arte como resistência frente as tradições, sejam elas quais forem e onde estejam. Ao transpor a ferramenta de outrora para o contexto brasileiro atual, os artistas que participaram desse evento fizeram lembrar o quão necessária é a luta poética frente a uma situação política como a do Brasil – que, recentemente, foi assim definida por Marilena Chauí, em entrevista à revista Cult:
“É uma situação gravíssima [a situação atual do país]. É gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofacista que está tomando conta da pauta política. Quando examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro de 2015 até agora, vemos o poder dos grupos dos ‘3B’: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário protofascista que existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio à tona (…) em uma onda de extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960. É uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos anos e sustentada pela pauta ‘boi, bala e Bíblia’ (…) Não há uma violência pontual, de modo que possamos falar em ‘ondas de violência’. Não. Há uma violência estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade hierárquica, vertical, oligarquiza, conservadora, que defende os privilégios contra qualquer forma de direitos”.²
Há uma coisa, no discurso de Chauí, que estabelece curiosa relação com os evento cênicos aqui evocados, quando ela aponta o quanto as pautas políticas podem ser cíclicas. O fato, absolutamente desesperador, parece também indicar uma sensação paradoxal (talvez esperança): é aí, também, que parece residir a expressividade da retomada do universo do Cabaré. A vida, diferente do que consta por aí, não é um cabaré. Mas deveria.
¹ BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008
² CULT, Revista Brasileira de Cultura, n.º 209, ano 19. São Paulo: Editora Bregantini.