O Festival de Curitiba, mais importante festival de teatro do país, inicia amanhã sua 26ª edição. Serão mais de 350 atrações distribuídas por alguns espaços cênicos da cidade até o próximo dia 9 de abril.
Convidada para abrir esta edição do Festival de Curitiba, Fernanda Montenegro contará, ao longo do evento, com a participação de grandes nomes como Fernanda Torres, Andrea Beltrão, Camila Pitanga, Caio Blat, Débora Bloch, Júlia Lemmertz, entre outros.
A Mostra, que contará com 38 atrações, receberá três espetáculos internacionais – Moçambique, Olympia e O que Podemos Dizer do Pierre -, além de 8 estreias nacionais – Blank, Eu Sou, o novo show de Gaby Amarantos, Louca pelo Cheiro do Mar e toda a II Curitiba Mostra. Por sinal, este é o primeiro ano em que atrações musicais compõem o festival. Além de Gaby, Mart’nália traz a Curitiba seu novo show, “+Misturado”.
Pelo segundo ano consecutivo, a curadoria do Festival de Curitiba ficou a cargo dos atores e diretores Guilherme Weber e Marcio Abreu. Para a edição 2017, o mote da curadoria é “Só me interessa o que não é meu”, frase retirada do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade. Weber e Abreu concederam entrevista exclusiva para A Escotilha, explicando um pouco das intenções da curadoria e suas visões sobre o festival.
A Escotilha: Em um período que as crises econômica e política têm resultado em cortes de gastos para políticas culturais, o quanto é representativo poder realizar mais uma edição do Festival de Curitiba?
Guilherme Weber: Manter um festival do porte do FTC é e sempre foi um ato de resistência. Ao longo de 26 anos o Festival vem se mantendo firme, passando por diferentes governos e prefeituras. É fundamental para a cidade de Curitiba e a coloca no mapa cultural do mundo com o diálogo com Companhias, artistas, curadores e produtores de diferentes partes do mundo. Ele cria identidades culturais, fomenta o pensamento, o novo e também a memória. Chefes de estado passam, o Festival de Teatro permanece.
‘Uma curadoria não busca respostas, faz perguntas. Quem as responderá talvez sejam os artistas e seu público. Ou talvez façam outras perguntas a partir delas.’
Passadas tantas edições, o quanto o FTC se mantém importante para a transformação da vida cultural da cidade? O convite feito pela curadoria para que ocupemos teatros, ruas e espaços de arte também pode ser interpretado como um convite à ressignificação da cidade?
GW: Ao longo de todas estas edições, o Festival produziu memória para diferentes gerações de espectadores, formou platéias e refinou a percepção de outras, sempre envolvendo a cidade de diferentes maneiras. Nós, como curadores, queremos potencializar o uso da cidade e seus espaços urbanos. As produções vão às ruas para encontrar as pessoas e favorecer, de modo democrático, tanto a fruição estética, quanto a veiculação de símbolos políticos desta troca. A arte urbana atua como ruptura, espetáculo e experiência democrática, ressignificando o popular e o cotidiano dos lugares. Cabe a arte também a função de devolver a cidade aos seus moradores.
A manifestação artística tem em comum com o conhecimento científico, técnico e filosófico seu caráter de criação e inovação, o ato criador. Elas produzem conhecimento a partir de perguntas fundamentais que desde sempre o homem se fez com relação ao seu lugar no mundo. Imaginando a curadoria feita por vocês como uma dessas perguntas fundamentais, em busca de respostas a quais delas a curadoria está atrás?
GW: Uma curadoria não busca respostas, faz perguntas. Quem as responderá talvez sejam os artistas e seu público. Ou talvez façam outras perguntas a partir delas.
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O aforismo que serviu de mote para a curadoria expressa perfeitamente a ideia de “devoração cultural” proposta por Oswald. Recentemente, a apropriação cultural tem ganhado espaço nos debates. Como a curadoria analisa o conceito de antropofagia e a atitude antropofágica nesses termos em um festival de teatro?
GW: O conceito de antropofagia exige livros inteiros, é um tema vasto e fascinante. Sugerimos, como apontamos no texto de apresentação de nossa programação, o magnífico estudo de Beatriz Azevedo sobre o tema, “Antropofagia – Palimpsesto Selvagem”
Quanto a atitude antropofágica para um festival de teatro, especificamente para o Festival de Teatro de Curitiba é não se pretender apenas uma ação no campo da arte e da cultura, mas também revirar e remexer questões sociais e políticas, além de fomentar a produção de sínteses originais.
A inspiração no Manifesto Antropofágico traz algumas possibilidades de compreensão a respeito da escolha, entre elas a busca por um teatro mais próximo e acolhedor no contexto de uma sociedade tão díspar e a tentativa de (re)definição de uma identidade teatral mais brasileira. Qual vocês creem ser as principais dificuldades enfrentadas pelo fazer teatral neste Brasil de 2017?
GW: A curadoria olhou para a ideia do Matriarcado Oswaldiano como uma inspiração a partir da qual surgiu o convite para grandes mulheres, criadoras, apresentarem seus trabalhos em Curitiba ecoando a velha luta contra o autoritarismo expresso na imagem do pai e nos sistemas sociais que a prolongam, contra os quais Oswald de Andrade fez a apologia do matriarcado. Ecoa também para nós a frase final do Fausto do Goethe, “O eterno feminino nos levará para o alto.
Mas a construção do pensamento do matriarcado dentro do Manifesto Oswaldiano aponta também para outras direções além da que nos inspirou, como as novas etapas das condições do estado primitivo, por exemplo.
Oswald manifestou na tese A crise da filosofia messiânica que o homem estaria em um estágio de negatividade, na antítese, consequência da “ruptura histórica com o mundo matriarcal”. Ou seja, o Matriarcado de Pindorama seria como restituir a si mesmo. No contexto do FTC, o que representaria essa reedição do matriarcado e qual a importância deste diálogo proposto pela curadoria?
Marcio Abreu: As principais questões, não exatamente dificuldades, tem a ver com entender o que pode ser a dimensão política na arte. Como friccionar os temas indesviáveis do nosso tempo, no país e no mundo, conscientizando legitimidades, ampliando os espaços de inclusão e diálogo, problematizando e reinventando o léxico e os códigos de linguagem. Entendendo que revolução e linguagem são instâncias inseparáveis.
‘Arte não visa, necessariamente, o lucro ou lida com vocabulário do mercado, como produtividade, eficiência, eficácia, etc. A experiência de criação artística lida com o erro, o risco e o imponderável.’
Curitiba é uma cidade por tradição em que grupos teatrais e atores são prolíficos. Ainda assim, não é raro encontrar espetáculos em que o número de assentos vagos é grande. No FTC, mesmo com uma quantidade considerável de apresentações gratuitas, o valor de R$ 70,00 ainda é pouco acessível a parcelas da população. De que forma os festivais de teatro conseguem desbravar esse caminho árido e servir tanto como fomentadores quanto popularizadores das artes cênicas?
MA: Esse é um desafio fundamental: entender a economia da cultura e a economia da artes, que nem sempre são coincidentes. A produção teatral contemporânea é de uma pluralidade exuberante. Os modos de produção também se diversificaram nos últimos anos e devem, agora mais do que nunca, se reinventar. É preciso entender que arte tem dimensão pública e deve, portanto, ser viabilizada pela sociedade como um todo e, em parte significativa, pelo Estado. Arte não visa, necessariamente, o lucro ou lida com vocabulário do mercado, como produtividade, eficiência, eficácia, etc. A experiência de criação artística lida com o erro, o risco e o imponderável. Aos poucos, como curadores, tentamos influenciar mudanças na base desse pensamento no FTC. Nesta edição haverá na grade oficial espetáculos e ações gratuitas. Sem dúvida é preciso pensar e agir em relação a isso de modo mais profundo. Os festivais são momentos importantes de convocação ao publico e de reunião forte da sociedade ao redor do teatro.
Os últimos anos da política brasileira acirraram os ânimos e hoje é um consenso que temos um país dividido em vários, como se cada parte não fosse capaz de se enxergar na outra. O teatro ainda consegue ter esse papel transformador de mostrar às pessoas que existem outros modos de pensar e agir, outras realidades?
MA: O teatro se potencializa a cada dia, se renova como lugar de reverberação de pensamentos e formas de existir no mundo. Anacronicamente tão ancestral e tão atual. É um dos lugares mais potentes para a escuta e percepção das diferenças.
Também houve um cuidado em trazer a esta edição espetáculos que tensionam as relações humanas a partir do confronto de conceitos ideológicos, esse emaranhado de caminhos que compõem a natureza humana. Como vocês creem que o teatro olha as pessoas e como as pessoas olham o teatro?
MA: Sabemos que sem a dimensão da arte, a aridez da vida no contexto do mundo hoje, mata, pouco a pouco as diferenças, os pensamentos, embota as formas de percepção do outro. O teatro tem o desafio da presença compartilhada: pessoas, umas diante das outras. O teatro, por definição, convoca a essa experiência. Parte da população ainda vê o teatro como mercado de elite. Mas outra parte significativa da sociedade, nos rincões das cidades e do país, vive a experiência do encontro, da invenção, da ampliação dos sentidos e do exercício de cidadania que é o teatro. É preciso continuar semeando.
Colaboraram Bruno Zambelli e Alejandro Mercado.