Há pouco mais de um ano atrás eu perambulava pelas ruas de Curitiba pela primeira vez. À época, desembarquei na cidade para a cobertura especial da Escotilha sobre o festival Olhar de Cinema que acontece anualmente na cidade. Além da euforia e da saudade de um velho amigo, levava na bagagem um computador, alguns cadernos, um estojo, uma muda de roupas e dois livros que me acompanharam nessa empreitada: Cartas ao Mundo e A Hora Depois do Sonho.
Cartas ao Mundo é uma dessas obras imprescindíveis, que devemos deixar ao lado da cama para recorrer sempre que precisamos de inspiração ou força para seguir em frente. O livro é um “apanhado” das cartas que o cineasta Glauber Rocha enviou a amigos, parceiros, amores e familiares durante toda a sua vida. Uma preciosidade em forma de livro! Já A Hora Depois do Sonho é um romance proletário do poeta, ensaísta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini.
Como podem ver, eu, um homem que gosta de cinema mas sabe suas limitações ao escrever sobre tema, me apeguei a dois gigantes da sétima arte para me acompanharem durante os gelados dias de estadia em Curitiba. Mergulhamos, nós três, de cabeça no festival e entre películas e chopes fizemos uma cobertura que, dentro de suas limitações, muitos nos orgulha e pode ser conferida na íntegra aqui.
Voltei da cidade com algumas certezas, muitas dúvidas e a saudade em forma de lembrança martelando o fundo do peito. Por lá deixei alguns amigos, uma bota e uma escova de dentes que esqueci no hotel e alguns fantasmas diluídos em copos generosos de cerveja. Além da saudade, trouxe comigo duas novas paixões garimpadas num tal Sebo Kapricho: A Náusea e Teatro em Aberto.
A Náusea é considerado o primeiro romance filosófico de Sartre, mas também é conhecido como um dos livros responsáveis pela decisão que tomei há alguns anos em relação a empréstimo de livros para amigos. Mas não conto pelo simples fato de que muitos por aqui poderão me julgar pela decisão que é, até hoje, irrevogável.
Teatro em Aberto, e é sobre ele que escreverei hoje, é o último livro da tetralogia de ”saladas” de texto, como define o próprio autor, a respeito de teatro, publicados, ou não, pelo gigantesco Fernando Peixoto. Peixoto foi pesquisador, jornalista, ensaísta e tradutor. Além disso, foi diretor, ator e iluminador teatral. Se alguém por essas bandas entendia realmente do riscado, esse alguém era ele.
Natural de Porto Alegre, Fernando Peixoto dedicou-se desde cedo a estudar e praticar a arte do teatro. Em 1958, ingressou na primeira turma do curso de Arte Dramática na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nessa mesma época, passa a escrever no jornal Correio do Povo, da mesma cidade, sobre cinema, teatro e sobre a cultura em geral. É também nesse período que funda e integra o elenco do Teatro Equipe, grupo teatral que tinha como base o Teatro de Arena de São Paulo. Com a fundação do Equipe, Fernando passa a manter contato com Augusto Boal e Sábato Magaldi. Em 1964, muda-se para São Paulo com sua então mulher Ítala Nandi, onde passam a integrar o Teatro Oficina ao lado de José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi.
Fernando atua em espetáculos memoráveis da companhia como Quatro num Quarto, Pequenos Burgueses, Andorra, O Rei da Vela, Galileu Galilei e Na Selva das Cidades. É através do Teatro Oficina que Peixoto compreende o teatro enquanto estilo e motivo de vida, dedicando-se integralmente às produções, mas sem esquecer o lado teórico e crítico, fruto de sua paixão tanto pelo jornalismo quanto pela pesquisa acadêmica.
Em 1969, passa a integrar o elenco do Teatro de Arena nas excursões internacionais de Arena Conta Zumbi e Arena conta Bolívar, ambos de Gianfrancesco Guarnieri. Durante essas encenações, se aprofunda na teoria proposta por Boal, e levada à cena pelo Arena: o teatro do oprimido. É nessa fase que intensifica seus estudos a respeito de Bertolt Brecht, sobre quem escreveria incansavelmente no futuro. Atuou também ao lado de Antônio Abujamra no Teatro Popular do Sesi – TPS.
Como diretor, é conhecido pelo esmero e pela precisão de suas montagens. Vencedor dos prêmios APCA e Moliére por conta das direções de Um Grito Parado no Ar e Frank V, Fernando Peixoto sempre foi reconhecido pela militância em defesa de novos autores, e só aqueles que já tentaram de alguma forma realizar o sonho de ver um texto seu encenado, diante das dificuldades que vão desde contato com companhias até divisão de borderô, sabem a importância desse papel. Não à toa Fernando foi responsável por colocar em cena dezenas de textos de jovens escritores, muitos deles consagrados pelos palcos nos dias atuais.
Atuou também no cinema participando de diversos filmes, entre eles O Homem do Pau-Brasil, biografia onírica de Oswald de Andrade dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, e no consagrado O Beijo da Mulher Aranha, de Héctor Babenco. Soma-se a tudo isso a sua incansável produção jornalística e o trabalho enquanto teórico, tradutor e professor que desenvolveu até o seu encantamento em 2012.
O homem da prática teatral, com uma carreira intensa e irretocável, é inegavelmente um norte para qualquer ator, diretor ou ser humano que enxergue no teatro uma paixão digna de devoção absoluta e dedicação sobre-humana. Trabalhar com os maiores de seu tempo, presenciar, e de certa maneira escrever, a história das artes cênicas de sua geração é algo de que poucos poderão se gabar quando encontrarem com a eternidade. Ultrapassar a sua própria geração, então, é algo digno apenas daqueles que, como Fernando, figuram no panteão dos monstros sagrados de nossos palcos.
Mas já ha algum tempo a faceta desse teatrólogo que mais me interessa diz respeito aos seus escritos, seus pensamentos, sobre essa arte. Foi em sua obra que me debrucei quando aceitei o convite para escrever sobre teatro e, confesso, é a ele quem visito em momentos de dúvidas e incertezas em relação a esse ofício que ainda guarda muitos segredos, causadores de crises extremas de ansiedade neste que vos escreve.
Foi assim, numa dessas crises, que abri o livro adquirido em Curitiba, motivo desse texto, e que até então encontrava-se intacto na estante de livros que eu insisto em prometer arrumar, mesmo sabendo que dificilmente cumprirei o prometido.
É através de Fernando Peixoto que podemos compreender a importância de algo que o teatro tem perdido com o passar dos anos: a vontade de transformar seu próprio tempo.
Teatro em Aberto é uma dessa saladas de Fernando Peixoto. Com textos escritos durante um longo período de tempo, a compilação vai de 1959 a 1997, o livro é um importantíssimo registro histórico da produção desse período, além de contar com algumas entrevistas, ensaios e registro de personalidades ligadas ao teatro no Brasil e no mundo. Em uma espécie de prefácio intitulado “INESPERADA TETRALOGIA”, Fernando Peixoto retoma os livros anteriores e discorre sobre o conteúdo do último volume da extensa “coleção”.
Em certa altura, explica a inclusão de três textos que considera de um estranhamento profundo dentro de uma edição dedicada ao teatro. Apesar do estranhamento, o autor diz que a ideia de adicioná-los ao livro foi própria e que, mesmo relutante, fez questão de manter o “capricho” necessário. Segundo Fernando Peixoto, “no apêndice estão esses textos cujos temas são três animais: a preguiça. O caranguejo e o pinguim… Foram publicados no início de 1969 no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, a pedido de meu amigo de sempre, Leandro Konder. Era um momento de violência, repressão e censura e à atividade artística, e também jornalística, frequentemente voltavam-se para a metáfora, tratando um tema, mas na verdade, nas entrelinhas, sugerindo referências e reflexões de outra natureza, procurando assim vencer os fascistas brasileiros da ditadura militar”.
A grandiosidade e a importância da obra de Fernando Peixoto não podem, e nem devem, serem medidas por esse simples parágrafo, no entanto, é através dele que podemos compreender a importância de algo que o teatro tem perdido com o passar dos anos: a vontade de transformar seu próprio tempo.
Quando temos a nossa liberdade tolhida, violentada, é através da arte que encontramos voz para reivindicar aquilo que nos negam. É a arte quem nos oferece sorriso em tempos de lágrimas e quem nos alimenta a alma para aguentar a luta por nossos direitos. Entregar-se a uma obra é fazer dela seu único destino. É transformar em beleza tempos dominados pelo horror. Fazer teatro é participar de uma força de rebelar-se contra essa condição de miséria que nos é imposta diariamente. É ter os olhos voltados para a esperança, mesmo que não hajam motivos para tanto.
Creio que assim como Fernando Peixoto também acredito na metáfora enquanto ferramenta para burlarmos tempos obscuros, por isso, e mantendo-me fiel à escolha de animais, proponho que para esses tempos que se anunciam possamos fazer do teatro um felino daqueles que guardam nos olhos de fogo o mistério que só quem se entregou ao fundo do mato conhece. Uma pantera que devora gente. Um bicho selvagem que mastiga fantasmas e bebe sangue quente para manter-se jovem.
É o teatro que guarda o pulo do gato de nosso tempo e é em seu par de olhos fumegantes que um novo amanhã adormece. Que as garras e os corações estejam afiados para essa eterna peleja contra o desconhecido.