Em meu artigo publicado por aqui em 22/05 – O teatro de Oswald de Andrade (leia aqui) – comentei brevemente sobre a encenação da peça O Bailado do Deus Morto, de autoria de Flávio de Carvalho, que levou ao fechamento do Teatro da Experiência em 1933. À época, prometi um artigo inteiro sobre o episódio, a fim de discutir a censura teatral que acontecia nos anos 1930. Não que estejamos livres das garras violentas desse monstro opressor, muito pelo contrário. A censura ainda sobrevoa e amordaça o inconsciente daqueles que se dispõe a fazer da criação seu maior tesouro.
Pois cá estou para cumprir a promessa feita em maio, ou melhor, parte dela. Explico-me: ao ver, novamente, as ruas de nossa terra tomadas pelo coro dos aflitos, resolvi mudar de estratégia. Nada tenho contra manifestações, no entanto, é dever de qualquer cidadão repudiar um movimento que anda de mãos dadas com fascistas dispostos a trazer à vida velhos fantasmas que ainda nos eletrocutam a memória. Entristece-me ainda mais ver o entusiasmo banhado a ódio que muitos jovens carregavam junto às bandeiras de Pindorama. Diante dessa triste constatação, resolvi não mais dedicar o artigo a um episódio específico, e sim trazer à cena a figura anárquica de Flávio de Carvalho através de sua atuação com o Teatro da Experiência.
Flávio de Rezende Carvalho (1899-1973) foi, entre outras coisas, artista plástico, engenheiro, arquiteto, cenógrafo e teatrólogo, ou seja, um de nossos maiores agitadores culturais. Nascido em Amparo de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, mudou-se com um ano para a cidade de São Paulo, onde desenvolveu a maioria de seus trabalhos. Inquieto e provocador, há quem considere o artista como precursor da performance no Brasil devido sua Experiência Nº 2, quando, com a intenção de “desvendar a alma dos crentes” e fazer um estudo da psicologia das multidões, Flávio caminhou ao lado de uma procissão, em sentido contrário, recusando-se a tirar o chapéu que ostentava na cabeça em atitude considerada profana. Entre gritos de “lincha” e “mata”, o artista plástico foi perseguido pela multidão. O imbróglio só teve fim na delegacia, com Flávio prestando esclarecimentos às autoridades. O fato está eternizado na peça O Homem e o Cavalo, de Oswald de Andrade, no Quadro Nº 8.
“Inquieto e provocador, há quem considere o artista como precursor da performance no Brasil.”
Após a Revolução Constitucionalista de 1932, Flávio de Carvalho desvincula-se do núcleo criador da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e funda, junto com Di Cavalcanti, Antônio Gomide e Carlos Prado, o Clube dos Artistas Modernos (CAM), com sede à Rua Pedro Lessa, em São Paulo. No CAM, Carvalho promove debates e palestras, além de exposições de Käthe Kollwitz e de cartazes soviéticos. Por lá passaram e palestraram artistas renomados como: Mario Pedrosa, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Pagú, Caio Prado Junior, Jorge Amado e tantos outros que se alinhavam ideologicamente ao clube.
O Clube dos Artistas Modernos possuía um salão para palestras e exposições, sala de leitura, uma biblioteca, um bar e, a partir de 1933, o Teatro da Experiência.
O Teatro da Experiência estreou com a encenação – que seria a única realizada pelo grupo – da peça O Bailado do Deus Morto, escrita por Flávio de Carvalho especialmente para a ocasião. A peça dialoga com a dança, passando por diversas vanguardas artísticas, e trata de um conjunto de coreografias e ações para a celebração de um ritual de despedida e libertação, já que a morte de Deus significa a libertação de seu criador, no caso, o próprio homem. A estreia foi um sucesso segundo as palavras do próprio autor: “ A inauguração foi brilhante. Um público variado e duas vezes maior que a capacidade do teatro enchia o recinto e transbordava pela escada estreita dos altos do Clube dos Artistas Modernos”.
Além do Bailado, a programação do Clube preparava a encenação de O Homem e o Cavalo, que Oswald escreveu exclusivamente para o teatro da experiência, e Esperança, escrita por Nicolaieff com tradução de Flávio. As duas apresentações nunca aconteceram, já que o Teatro da Experiência foi fechado e teve o seu funcionamento proibido pela polícia, que manteve uma patrulha em frente ao mesmo. Diversos artistas e intelectuais saíram em defesa do teatro, e da liberdade evidentemente, entre eles Rubem Braga e Procópio Ferreira, além do próprio Flávio de Carvalho que leu um protesto violento contra a censura e o Delegado de Costumes.
O fato é que o Teatro da Experiência poderia ter representado uma ruptura moral e estética no teatro brasileiro dos anos 1930, seja através da atuação ou do compromisso com artistas como Oswald, que teria ali a primeira encenação de uma peça de sua autoria, coisa que só viria a acontecer em 1967 com a histórica montagem do Teatro Oficina. Não fosse o ocorrido, o Brasil acenderia uma chama anárquica que alumiaria nossos olhos até hoje diante do abismo.
Invocar a emblemática figura de Flávio de Carvalho atualmente é invocar o espírito livre que reside em cada ser humano. Flávio nos legou a ousadia de nunca nos curvarmos diante do medo e da opressão, mostrando que não precisamos de limites, tão pouco de senhores. Que os “jovens revolucionários” do século XXI aprendam com os artistas modernos, a quem julgam empoeirados, a andar na contramão de um mundo doente com o chapéu na cabeça e toda a liberdade no fundo dos olhos!