Fevereiro de 1971. Chove na cidade de São Paulo. É noite. Após um longo dia de ensaio da peça Simon Bolívar, Augusto Boal e seus companheiros do Teatro de Arena baixam as portas metálicas do espaço e se despedem. O cansaço é evidente e parece ter deixado marca no rosto de todos. Um dos atores, antes de começar a sua caminhada, indaga ao diretor: “Afinal, pra que é que a gente fica ensaiando tanto? A censura não vai mesmo deixar que a gente faça a peça…”.
Boal não sabia responder. O dramaturgo àquela época não acreditava em nenhuma “abertura”. Na sua opinião, o governo não restauraria nada de motu proprio, mas o artista se recusava a aceitar a autocensura e continuava a produzir aquilo em que acreditava. “Se querem proibir a minha peça, que proíbam, mas não contem comigo para me censurar previamente”, respondeu depois de um tempo ao camarada, antes de se virar e sumir numa névoa de escuridão e garoa pelas ruas da capital.
Na mesma noite, minutos depois, Augusto Boal foi sequestrado e preso por agentes da ditadura militar. Levado ao DOPS, foi registrado com nome falso para dificultar a sua indentificação. Segundo Boal, o local era uma espécie de “escritório policial clandestino”. Dali, foi levado para um cela individual, a primeira cela do fundão, onde foi torturado com choques elétricos no “pau-de-arara”.
Tempos depois foi transferido para o presídio Tiradentes, em São Paulo, e ali passou dois meses numa cela coletiva. É nesse período que rabisca os desenhos e as anotações a partir das quais escreveria posteriormente duas de suas obras mais impressionantes: a peça teatral Torquemada e o romance autobiográfico Milagre no Brasil.
Ambos os textos estão fora de catálogo no Brasil, mas podem ser encontrados em sebos ou com vendedores de livros usados. Em Torquemada, escrita em 71, mesmo ano em que ganha a liberdade, o autor faz um protesto contra a ditadura militar e resgata os episódios vividos no cárcere.
A peça tem como protagonista o Padre Tomás de Torquemada, primeiro inquisidor-geral do Santo Ofício, introduzido na Espanha no final do século XV. Através da narração de suas atrocidades, Augusto Boal trabalha sua narrativa associando a inquisição católica medieval à ditadura militar no Brasil.
Já em Milagre no Brasil, escrito anos depois, entre 75 e 76, o autor faz um relato minucioso, e doído, sobre sua trajetória carcerária. Em tom de denúncia, o testemunho em primeira pessoa acaba de ser lançado pela primeira vez na França, pela editora Chandeigne, com tradução de Mathieu Dasse e introdução da historiadora francesa Anaïs Fléchet.
Narrando seus dias de prisão, as torturas sofridas e a violência usada pelo Estado brasileiro, Boal transforma o sofrimento em obra de denúncia potente e tranformadora.
O testemunho do Oprimido
Publicado pela primeira vez no ano de 1976, em Portugal, e posteriormente, em 1979, em terras tupiniquins, Milagre no Brasil foi chamado em matéria do jornal francês como o relato cru de um oprimido. Narrando seus dias de prisão, as torturas sofridas e a violência usada pelo Estado brasileiro em nome de uma moral completamente imoral, Boal transforma o sofrimento em obra de denúncia potente e tranformadora.
Em entrevista à RFI, Julian Boal, escritor, especialista em teatro e filho do criador do Teatro do Oprimido, diz esperar que a publicação na França ajude a relançar e reeditar a obra no Brasil. “Num momento de tão grande relativização do que aconteceu durante a ditadura, num momento em que nosso presidente é alguém que exalta a figura de Ustra, além de outras figuras, é importantíssimo ter um relato das pessoas que sofreram de fato o que foi a repressão naquela época”. Ainda segundo Julian, o livro é um “ato de resistência contra esse desgoverno genocida”.
Milagre no Brasil retrata os horrores sofridos por homens e mulheres que decidiram não se curvar diante do abuso e da violência do Estado, que resistiram e deram suas vidas pela liberdade de todo um país, e por isso é imprescindível para que possamos compreender o nosso passado e reorganizar a luta futura em uma terra que não cansa de revisitar e ressuccitar antigos fantasmas.
Que a publicação francesa inspire editores brasileiros a reeditar essas e outras obras de Boal, tornando-as acessíveis novsamente, e dando o devido valor à história de um dos nossos maiores e mais importantes homens de teatro. Vida longa ao pensamento do Boal e que sua coragem nos sirva de exemplo para atravessar mais esse período sombrio de nossa história.