Quando falamos sobre teatro, é preciso reconhecer que essa arte, como tantas outras, possui raça, gênero, classe e territórios específicos. Impossível fugir dessa realidade. Se em alguns momentos comemoramos conquistas grandiosas, merecidamente, em outros tantos fechamos os olhos e corroboramos, ainda que a contragosto, o horror, o desespero e a impossibilidade. Em São Paulo ou em Nova York, em Taperóa ou nos confins de Londres, as artes cênicas sempre, e sempre mesmo, estiveram na mão daqueles que, por conta de sua pele ou por excesso de moeda, tiveram a possibilidade de fazer dessa arte seu meio e modo de vida. Exceções por aí existem? Talvez aos montes, mas a regra é absoluta e diante dela é, no mínimo deselegante, negar o óbvio.
Douglas Turner Ward, nascido em 05 de maio de 1930, em Burnside, Louisiana, foi um desses homens que renegam a história e, a fórceps, inventam um futuro. Filho de fazendeiros pobres, seu pai um alfaiate, mudou-se para Nova Orleans aos oito anos de idade e, ainda criança, já carregava no corpo a revolução que aprendeu a chamar de sina. Entre o desespero e o ódio, fosse ele resultado de sua condição ou hóspede da naturalidade racista do país em que rebentou, floresceu feito pétala potente. No ano de 1946 ,contra todas as certezas, foi admitido na Wilberforce University, em Ohio, de onde partiu em voo livre para estudar teatro e política na University of Michigan, faculdade que largou aos dezenove anos para se mudar para a então frutífera Nova York, onde conheceu e se tornou amigo dos dramaturgos Lorraine Hansberry e Mr. Elder.
Corpo posto e espírito aterrissado na grande maçã, passou a trabalhar com teatro e jornalismo, ofícios que, de uma maneira ou de outra, manteve até o fim de sua existência. No ano de 1966, quando ainda engatinhava em sua carreira de ator, escreveu um artigo poderoso no The New York Times com o título original ”American Theater: for White only?” (em tradução literal, algo como “Teatro Americano: apenas para brancos?”). À época, o artigo causou espanto, evidentemente, e chamou a atenção do vice-presidente de humanidades e artes da fundação Ford, que logo, como todo bom burguês, anunciou a doação de aproximadamente 434 mil dólares para a criação de uma companhia negra de teatro. Mea-culpa, meus caros, mas imprescindível às artes do teatro.
Negro Ensemblend Company
Douglas Turner Ward foi um gigante, um homem que diante de sua impossibilidade fez florescer flores e frutos fecundos.
A NEC, como ainda é conhecida, foi criada em 1967 e tinha como diretor artístico Douglas Ward, além de Robert Hooks como diretor executivo e Gerald Krone como diretor administrativo. Desde sua fundação, a companhia lidou com duas críticas pertinentes: a primeira por estabelecer a sua sede em St. Mark’s Play House, no East Village, e a segunda por nomear um homem branco, Krone, enquanto administrador. A exigência à época era para que o grupo abrisse os trabalhos em um teatro no Harlem, bairro majoritariamente negro, e, por óbvio, nomeasse para a administração um homem ligado às suas origens.
Apesar das falhas, o grupo passa a produzir teatro da maior qualidade e é aclamado pela crítica. The River Niger (1972), de Joseph Walker, abocanha o prêmio Tony de melhor peça do ano, sendo adaptado para o cinema em 1976. No mesmo ano, pela mesma peça, Ward é indicado a melhor ator. A Soldier’s Play (1981), escrita por Charles Fuller, é um drama vencedor do Pulitzer, adaptado para o cinema em 1984. A peça conta a história de um oficial negro que passa a investigar um assassinato de um sargento do exército, também negro, na base da organização em Louisiana. Escrita durante a Segunda Guerra, a obra conta como as forças armadas norte-americanas foram segregadas. O crítico do The Times, Frank Rich, definiu a montagem como “superlativa”, adjetivo que parece definitivo ainda hoje quando se fala da apresentação.
Entre louros e porradas, a NEC é, ainda hoje, um campo de treinamento para atores, dramaturgos, diretores e designers envolvidos pelos braços quentes das artes cênicas. O reverendo Martin Luther King disse certa vez que a iniciativa “representou um passo magnífico em direção à criação de novos e maiores artistas na comunidade”. Roy Wilkins, diretor executivo da NAACP, disse que a fundação tinha “reconhecido o potencial do teatro negro e o talento de centenas de atores e artistas que lutaram individualmente por uma vida coletiva”.
Douglas Turner Ward foi um gigante, um homem que diante de sua impossibilidade fez florescer flores e frutos fecundos. Existem, e sempre existirão, cenários e apropriações de vida que justificam a ira, a revolta e a revolução; basta ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. Ward foi desses homens, de olhos atentos e ouvidos inquietos, que decidiram fazer da impossibilidade via, do descaso, revolta, e da condenação combate. Que descanse em paz o grande homem, que a terra lhe seja leve e que o seu exemplo, embebido de justiça e de glória, seja um norte nesses tempos tão absurdos quanto desiguais. Vá em paz, camarada. E obrigado por tanto!