“Resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos sobre a inferioridade negra”.
Abdias do Nascimento
OTeatro Experimental do Negro foi acima de tudo uma aventura. Uma aventura de experimentação criativa, social e política. Uma aventura de libertação, trilhada através dos caminhos da revolta e da resistência, que atravessou o tempo e transformou não só o universo teatral como também a sociedade e o povo brasileiro.
Fundado no ano de 1944, no Rio de Janeiro, o grupo se propôs desde a sua criação a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil através da educação, da cultura e da arte. Se a admirável figura de Abdias do Nascimento, fundador e principal nome do TEN, é central quando vasculhamos a história do Teatro Experimental do Negro, tão grande quanto a sua importância é o valor que Abdias dá a cada membro, cada “tijolo” que ajudou a construir essa muralha intransponível construída com o sangue e o sonho de tanta gente.
O início do Teatro Experimental do Negro

O ano era 1941. A cidade era Lima, no Peru. O lugar era o Teatro Municipal da cidade, capital do país. Abdias era mais um entre tantos. Poeta, estava acompanhado de cúmplices no ofício do peito. Três deles eram argentinos: Efraín Tomás Bó, Godofredo Tito Lommi e Raul Young. Um deles, com nome de imperador, era mais um rebento dessa pátria desnaturada chamada Brasil: Napoleão Lopes Filho.
A peça em questão não era qualquer uma, pelo contrário, tinha, por conta do histórico, fama de obra-prima. O imperador Jones, escrita por Eugene O’Neill, é uma peça que possui um protagonista negro, na ocasião interpretado por um ator branco “tingido de negro”, fato que chocou o até então economista Abdias.
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Segundo o próprio, “Àquela época, 1941, eu nada sabia de teatro, economista que era, e não possuía qualificação técnica para julgar a qualidade interpretativa de Hugo D’Evieri. Porém, algo denunciava a carência daquela força passional específica requerida pelo texto, e que unicamente o artista negro poderia infundir à vivência cênica desse protagonista, pois o drama de Brutus Jones é o dilema, a dor, as chagas existenciais da pessoa de origem africana na sociedade racista das Américas.”
Ofendido enquanto homem negro, devastado pela incompreensão de assistir em cena a impossibilidade de seu povo, Abdias do Nascimento se revolta. A seu ver, deveria ser normal a presença do negro em cena, não apenas em papéis grotescos e secundários, mas em papéis principais quando possuíssem o talento requerido pelo diretor, isso sem contar quando da exigência textual, como da ocasião em Lima.
Com a certeza que ilumina os heróis, Abdias tomou a decisão que transformaria sua vida: “no meu regresso ao Brasil, criaria um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias que representasse. Estava decidido!”.
Estreia

No Brasil, terra acostumada ao pesadelo, sonhar não é fácil. Foi apenas em 1944 que o Teatro Experimental do Negro tomou forma, ganhou corpo e se fez realidade. O festejado intelectual pardo, como o fundador do TEN fez questão de lembrar sempre que possível, Mario de Andrade, por exemplo, rechaçou a iniciativa.
Por outro lado, muitos negros marginalizados encontraram ali um motivo para lutar e se levantar diante da sociedade opressora brasileira. Operários, trabalhadores, empregados domésticos e favelados sem ocupação passaram a frequentar o Teatro Experimental do Negro e a participar ativamente de suas atividades.
Com elenco em preparação surge o primeiro problema: encontrar uma peça que representasse o pensamento e a luta do TEN. Em solo brazuca nada havia, então Abdias e sua trupe decidem montar a peça que deu início à odisseia do grupo: O imperador Jones.
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O sucesso veio a galope. Aguinaldo Camargo, ator principal, subiu ao palco do Municipal do Rio em 08 de março de 1945. Até aquele momento, nenhum negro pisara naquele teatro como intérprete ou como público.
A histórica encenação serviu de trampolim para a luta igualitária do negro em solo brasileiro, além de alçar a um “micro-estrelato” aquele povo que até então estava preso às senzalas, fossem elas físicas ou ideológicas. O sucesso reverberou no jornal, através dos críticos, e no meio teatral, através dos artista.
Além disso, era inegável que a própria cidade do Rio de Janeiro parecia transformada, ou abismada, pelo parto do Imperado Jones em terras cariocas. Apesar do sucesso, e do pedido público de reapresentação, a peça teve vida curta, aliás curtíssima. O Teatro Municipal cedeu apenas uma noite ao Teatro Experimental do Negro e manteve-se irredutível diante de todos os apelos, relegando à história, mais uma vez, a migalha dos homens do poder.
A criação de uma dramaturgia negra
Estamos condenados às relações que estabelecemos e aos meios com os quais lidamos com essas relações. Sacando isso, o Teatro Experimental do Negro foi, desde sempre, manifesto político em forma de ação.
O segundo passo do TEN foi a busca por uma dramaturgia que representasse a sua luta claramente, e não fosse exportada como no caso de sua primeira peça. O problema do negro brasileiro dá-se em terra brasileiras, portanto a dramaturgia que o representa exige criação de peças brasileiras sobre essa realidade.
Um aprofundamento sistemático da vida afro-brasileira, cravada nessa realidade doída desde o furo nas velas das embarcações cabralinas. Em 1947, surge a primeira experiência: O filho pródigo, peça de Lucio Cardoso.
Inspirada na parábola bíblica, a peça é precursora e abre-alas para as experiências seguintes: Aruanda, de Joaquim Ribeiro, baseada em elementos folclóricos da Bahia, Filhos de Santo, de José de Morais Pinho, Além Rio, de Agostinho Olavo, entre outros.
No ano de 1966 acontece, ainda, o 1º Festival Mundial das Artes Negras, em Dacar, e o governo brasileiro desmerece, de maneira criminosa, o trabalho do TEN ao considerar o “grupo” indigno de patrocínio para a viagem.
Teatro: uma questão política
A política está em tudo: na mesa do botequim, no balcão da quitanda, na ofensa dirigida a esmo e na urna eletrônica acusada de fraude. A política hoje é a vida, e de certa maneira sempre o foi, mesmo antes de se chamar política. Estamos condenados às relações que estabelecemos e aos meios com os quais lidamos com essas relações. Sacando isso, o Teatro Experimental do Negro foi, desde sempre, manifesto político em forma de ação.
Desde o início de suas atividades, em 1944, o espaço cravado na UNE disponibilizava para seus membros aulas de alfabetização, ministradas pelo escritor Ironides Rodrigues, além de Cultura Geral, interpretação teatral e palestras diversas.
Além disso, com a certeza de que era preciso atuar a nível político definitivamente, o TEN “chama” o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, reivindicando medidas específicas para a melhoria da qualidade dos cidadão negros do Brasil. A ideia era inserir aspirações específicas da coletividade afro-brasileira no processo de construção da nova democracia que se articulava após a queda do Estado novo.
Infelizmente, a empreitada não obteve sucesso. A velha patrulha ideológica, que possui o dedo em riste e a cuca fechada, acusou os membros do Teatro Experimental do Negro de um absurdo, e até hoje inexistente, “racismo às avessas”. Como hoje, a branquitude, mesmo travestida de revolucionária, cultivava a senzala de dentro de seu gabinete. Vida que segue.
A Convenção Nacional do Negro, que rolou em São Paulo em 45 e no Rio em 46, foi mais uma iniciativa do TEN. Dessa vez, a ideia era encaminhar à Constituinte de 1946 uma proposta que visava inserir a discriminação racial como crime de lesa-pátria. Mais uma derrota no país da pele clara. Vida que segue, novamente. Em 1950, há ainda o I Congresso negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, cuja o documento está publicado no livro O negro revoltado, e que cravou, de vez, o TEN na luta racial tupiniquim de nosso tempo.
Com esse histórico de batalhas, não é difícil adivinhar o que acontece ao Teatro Experimental nos anos de chumbo. Exilado, Abdias do Nascimento continua sua luta em busca da emancipação absoluta do negro através da criação e da resistência, luta que continua até hoje, agora através de seu legado o do legado de seu teatro.
A história do TEN é a história do teatro brasileiro, da luta do negro no Brasil e da crença em um mundo melhor construído através da arte, da tolerância e do afeto. O teatro foi, é e sempre será uma arte de combate. Isso graças aos deuses, é claro, mas também, e principalmente, graças a essa gente de teatro que não se cansa de lutar e que insiste em fazer do mundo um lugar melhor. Nem sempre dá certo, sabemos, mas a paixão, o desejo de transformação, sempre minimiza a importância do êxito.
Luta-se por uma causa, por um sonho, por um desejo que não cessa. Luta-se até mesmo pelo simples hábito de se manter na luta, afinal o fim dos que se entregam à inércia é o rebanho e nós, artistas, negamo-nos a caminhar sob a vontade de qualquer senhor. Se a intolerância ainda insiste em nos amedrontar diariamente, a coragem também não falta àqueles que se indignam diante da covardia que ela carrega em seu ventre apodrecido.
Para cada ofensa dirigida, para cada murro ou cada tiro disparado em defesa do indefensável, existem milhares de manifestações de apoio, afeto e de carinho às vítimas desses imbecis. Estamos juntos, sempre. E assim seguimos, graças a essa brava gente que é gente como a gente, e que não arreda o punho diante do medo. Ontem, hoje e sempre.
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